domingo, 31 de março de 2013

Princípio da legalidade


Princípio da legalidade nos nossos dias deve ser entendido não em sentido formal mas em sentido material que implica não a submissão a uma concreta lei mas a todo o ordenamento jurídico no seu conjunto. Nenhuma actuação administrativa pode deixar de estar obrigada pelo princípio da legalidade. Pode haver situações e que há vínculos maiores e mais profundos e outras em que há maior discricionariedade, mas em todos os poderes há poderes vinculados e discricionários o que varia é a medida. A discricionariedade não é uma excepção ao principio da legalidade não pode nem deve ser eliminado.

Trata-se de realizar aplicar todos os valores do ordenamento para aquela situação em concreto.
Princípio da legalidade aplica-se a toda a actividade da administração quer seja procedimental, de natureza substantiva, uma tarefa de execução quer de qualquer outra entidade em que a administração esteja envolvida.

No inicio do sec XX o principio da legalidade deveria ser aplicado à administração prestadora? Discutiu-se esta questão ,ou se era típico da administração agressiva? Autores defendiam separação entre administração agressiva em que ai fazia sentido a consideração da legalidade na administração prestadora essa prestação não devia ter qualquer limitações. ROGERIO SOARES dizia que corresponderia ao principio do senso comum. Esta construção que chegou a ser discutida no surgimento do estado social, esta posição esquecia que a administração quando presta bens e serviços não está apenas a favorecer os indivíduos mas alguns em relação a outros e que pode estar a tomar atitudes discriminatórias. Mesmo no quadro da administração prestadora a actividade administrativa está vinculada nos mesmos princípios e quadro da administração agressiva. Prosseguir determinadas tarefas em detrimento de outras pode em alguns casos configurar uma ilegalidade a atribuição de bens e serviços deve estar determinada por critérios legais.

Caso que fez mudar esta orientação foi relativo à construção de habitação social a seguir à guerra e há atribuição destas casas de acordo com critérios discriminatórios favorecendo os cidadãos de um partido politico em relação a outra. Esta foi considerada ilegal por razão de discriminação da igualdade. Ao prestar bens e dar bens a uns cidadãos cria uma situação potenciadora e lesiva do principio da igualdade. Não faz sentido deixar parte da administração fora da legalidade. Esta deve estar submetida a este princípio. Quando está em causa a atribuição de bens e serviços não deixam de estar em causa os princípios legais.

Outro domínio foi a tarefa da execução, na altura dizia-se no quadro da lógica tradicional que os actos administrativos eram executórios, administração poderia não apenas definir o direito mas executa-lo aos casos concreto. Este poder não é genérico não são todos os actos administrativos que gozam desta possibilidade de execução. Só pode existir quando esteja prevista na lei e quando cumpra os requisitos legais. Não há razão para considerar que estamos perante um privilegio da administração que não tem fonte legal e que corresponderia a um poder genérico. A administração está subordinada ao direito, tem de actuar no quadro do princípio da legalidade, este poder de execução só existe quando a lei assim o estabeleça logo não é genérico. 
Constituição é o código do procedimento administrativo consagra regras da execução.
Estamos perante um universo integrar que é coberto pelo principio da legalidade que deve ser entendido nos termos amplos como correspondendo à lógica da subordinação do direito no seu conjunto.


Onde se encontra princípio da legalidade?

Art.º 3CRP introduz  uma noção ampla do princípio da legalidade
Art.º 266/2 está consagrado o princípio da legalidade(subordinados à Constituição e a lei) esta norma é concretizada pela norma do CPA, art.º 3 qualquer vinculo legal seja legalmente preterido estamos perante uma violação, ilegalidade. Esta abertura da 2 parte do art.º 3/1 visa enquadrar quer os poderes vinculados quer os poderes discricionários. E o estado necessidade?  A própria excepcionalidade tem regras e por isso há legalidade. Legislador quis integrar esta situações excepcionais que correspondem a situações que podem justificar um aligeiramento o cumprimento de disposições mas que não permitem o desrespeito dos princípios fundamentais e que obrigam a indemnizar mesmo que haja uma situação de estado necessidade. Os valores fundamentais da ordem jurídica não podem nunca ser postos em causa mesmo aqui há uma lei especial para essas situações.

Inês Casanova de Almeida

sábado, 30 de março de 2013

Ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus


    Em pleno século XXI é impensável olhar para a Administração como se de um Leviatã todo-poderoso se tratasse que, sem limites age ou noutro sentido como uma “Administração Agressiva” e liberal(somente interventiva para afectar a posição jurídica dos administrados em tempos concebidos como objecto ou súbditos da Administração) na qual o Direito Administrativo é estudado tendo como base, só, o acto administrativo e a relacão jurídica administrativa(caso seja aceite a figura) entre Adiministração e particulares só é susceptível de ser concebida como uma “relação de poder” altamente desequilibrada sendo o particular apenas encarado como “sujeito passivo”(neste sentido em Portugal o Professor Marcello Caetano).
   Prevalece antes um Estado de Direito que vale tanto para as entidades admnistrativas como para os administrados: é legitimação e limite da actuação de ambos.  “Conduz (...) necessariamente ao afastamento das concepções da “relação de poder” já que «o cidadão e o “Estado” estão submetidos ao Direito», e que a Administração não possui nenhum «poder estadual, pré-existente à Constituição, justificador de uma relação de subordinação pré-jurídica,abstracta e geral»(Bauer) – Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Professor Vasco Pereira da Silva. O Estado Social no tocante à agressividade administrativa pré-establecida acrescenta generosidade, aparece a Leistungsverwaltung.
   Por outro lado ao lado do acto administrativo temos contratos, comportamentos fácticos, etc, como outras formas de actuação que não podem ser ignorados pela sua implicação multilateral  e a terceiros(Bauer).  Tudo isto conjugado vem alterar a dogmática tradicional e a doutrina moderna tende a aceitar, de uma maneira ou de outra(Entendimento restrito – Bachof  vs. Entendimento amplo - Henke) a Relação Jurídica em que privados e Administração ocupam uma posição igual(englobando posições activas e passivas), ainda que a segunda seja um poder público.  A situação jurídica dos cidadãos é mais forte e resistente às ingerências administrativas. Tal é visível na Constituição Portuguesa de 1976(arts. 9º, b), 202º, d) e 266º, por exemplo) e no Código de Procedimento Administrativo(art. 2º nº1).
  Confirma-se o ditado inglês -  “there’s no smoke without fire”. Urge abordar os direitos subjectivos públicos  que são, além de conteúdo, condição de existência da relação jurídica administrativa .
Sendo a Dignidade da Pessoa Humana um Princípio essencial do Estado de Direito é inelutável o reconhecimento dos direitos subjectivos públicos e sucessivamente a atribuição aos seus titulares de meios de defesa e garantia – o Procedimento.
Todavia a figura do direito subjectivo público não é a única forma concebível das posições dos cidadãos face à Administração. O Professor Vasco Pereira da Silva aponta, na obra supra referida, para mais cinco:
I.                    Tese negativista - Situação de interesse de facto conjugada com legitimidade processual pois os seus titulares visam um interesse próximo da Administração(Laferrière).
II.                  Concepção subjectivista - “Direito reflexo” - à legalidade que não se distingue do direito objectivo(Professor M.Caetano)
Esta posição é criticável no sentido de que o particular primordialmente irá defender interesses e até mesmo, direitos próprios além do “direito à legalidade” reduzindo-se a uma posição processual. Por outro lado tanto esta como a anterior não têm defesa significativa da doutrina devido à actualidade jurídica não autoritária.
III.                Dualidade de posições jurídicas distintas: (Professor D. Freitas do Amaral)
a)      Os direitos subjectivos resultantes imediatamente da norma jurídica(«direito a satisfação de um interesse próprio»)
b)      Interesses legítimos atribuídos mediata e reflexamente.  (mera «garantia da  legalidade das decisões que versem sobre um interesse próprio)

Esta ramificação é condenável pois o que varia é o conteúdo não a protecção que ou existe ou não existe. Tal revelará uma promiscuidade indesejada – porque é que a doutrina vai distinguir onde o legislador não distingue? Ou melhor, mesmo que o legislador o faça será que tal terá relevância prática no tocante ao regime aplicável?
IV.                Protecção Indirecta - A mesma dualidade do número anterior valendo, antes como distinção das duas figuras , o critério(com resultado positivo ou negativo) de situação de dependência do exercício do poder administrativo (Mario Nigro)
V.                  Teoria dos Direitos Reactivos – coexistência de direitos subjectivos “activos”(ou “clássicos) com direitos subjectivos “reactivos”(ou “novos”) . (Professor Rui Medeiros, García de Enterría)
É criticada pela confusão  entre direitos subjectivos e direitos processuais.

Retomando a posição unitária da situação jurídica dos particulares, defendida pelo nosso Professor, na linha de Buehler, há sempre um direito subjectivo público quando a norma jurídica concede uma posição de vantagem.  O Professor Pereira da Silva pegando nos nºs 3,4 e 5 do artigo 268º da CRP e entende que esta falando de “direitos e interesses legalmente protegidos” equipara  as duas figuras pois só “...um direito subjectivo é um interesse legalmente protegido susceptível de recurso contencioso”.  Não cabe assim proceder a distinções: “Direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos são, pois, no ordenamento jurídico português, duas formas de designar a posição  jurídico-subjectiva dos privados perante a Administração Pública, às quais corresponde sempre o mesmo regime jurídico”.
Não obstante,  o Professor D.Freitas do Amaral propõe uma posição diferente ao distinguir direitos subjectivos e interesses legítimos afirmando que a distinção tem relevância prática sendo que, os seus regimes jurídicos são distintos. Critica a redacção do nº1 do artigo 266º da CRP que refere “interesses legalmente protegidos” e encara-os tão somente como “interesses legítimos”.  A distinção reside no reconhecimento e protecção legal acima explicados: no direito subjectivo a protecção é “imediata e plena”(«o particular tem a faculdade de exigir à Administração um ou mais comportamentos que satisfaçam integralmente o seu interesse privado e, bem assim, o poder de obter a sua completa realização em juízo  em caso de violação ou não cumprimento») , no interesse legítimo “mediata ou de segunda linha” («o interesse protegido  directamente é um interesse público –e não é plena, mas mitigada, o particular não pode exigir à Administração que satisfaça integralmente o seu interesse privado, mas apenas que não o prejudique ilegalmente»).
O mesmo Professor acrescenta ainda à sua posição os “interesses difusos” que não pertencem a pessoas determinadas cabendo «a um grupo muito vasto de pessoas, não sendo desse modo divisíveis por sujeitos determinados». São interesses de um público só que desprovidos de “formalização organizatória” e de definição por lei(52º nº3 a), 60º, 66º e 78º, CRP).
Mesmo assim, o Professor Pereira da Silva entende que não é necessária a distinção feita pelo Professor D.Freitas do Amaral pois as regras da irrectroactividade das normas e as da responsabilidade civil da Administração são aplicáveis tanto aos ditos direitos subjectivos e interesses legítimos.  A distinção assenta no conteúdo  e de resto todas as posições são substantivas, sendo ainda defendida uma analogia com o Direito Civil.
Em suma, após a investigação e comparação de posições  creio que fazer uma diferenciação de posições activas faceà Administração não se afigura a opção mais correcta porque deixará os particulares numa posição desprotegida e confusa. A protecção das suas posições jurídicas administrativas, independemente do nome ou das distinções feitas, deve ser permitida por consagração dos Princípios da Dignidade da Pessoa Humana e da Igualdade e não faz sentido o catálogo proposto sendo que o produto é so um. 
Se o legislador não distingue as três figuras porque é que o fará certa doutrina?


Bibliografia:  

- Amaral, Diogo Freitas do - «Curso de Direito Administrativo», volume II, 2ªedição, Almedina, 2011 

-Silva, Vasco Pereira da - «Em Busca do Acto Administrativo Perdido» , Almedina, 1995

quinta-feira, 28 de março de 2013

Princípio da Boa Fé

 A actuação da Administração Pública hoje em dia envolve sempre uma certa discricionariedade e uma determinada vinculação, manifestando-se esta dupla vertente nos três conceitos de actuação que o Professor Vasco Pereira da Silva descreve como constituindo um ciclo que se repete constantemente em qualquer acto da Administração, nomeadamente i) a interpretação, ii) a aplicação aos factos e iii) a decisão. Há, portanto, uma actuação com base na lei, pelos critérios e parâmetros legais, mas que envolve necessariamente uma margem de decisão, discricionária. Ora, é nesse âmbito que entram os princípios constitucionais, que aparecem ao lado da competência e do fim legal da actuação como vínculos de controlo da discricionariedade da Administração Pública. Princípios esses que permitem um controlo ampliado e material da própria actuação.
 De entre os princípios consagrados nos artigos 266º e 267º da Constituição, assim como no artigo 3º e seguintes do Código do Procedimento Administrativo, optei pelo princípio da boa fé, que agora irei comentar.
 A boa fé fascina-me acima de tudo pela sua transversalidade, tendo um campo de aplicação enorme - apesar de aparentemente ser um conceito algo indeterminado - tanto no Direito privado como no Direito público. Exprime uma preocupação para com as particularidades do caso concreto, de acordo com os valores ético-jurídicos da comunidade, materializando-se nos subprincípios da tutela da confiança e da primazia da materialidade subjacente. Ora, são esses mesmos dois subprincípios que o art.6º-A, alínea a) e b) do CPA consagra, da mesma forma e na mesma lógica que são consagrados no Direito privado. Visa tutelar a confiança dos particulares, impedindo que se criem falsas expectativas que possam resultar num dano na esfera do particular, da mesma forma que procura sempre sobrepor a materialidade à formalidade, condenando um exercício formalmente correcto mas materialmente distorcido do direito (a figura do abuso do direito é um excelente exemplo disso mesmo).
 É também um princípio que directa ou indirectamente "entra" em qualquer tipo de situação jurídica, desde o mais simples contrato à mais diversificada relação jurídica, pública ou privada. Por conseguinte,  realço dois pontos:
 Em primeiro lugar, a boa fé está no art. 266º/2 da Constituição e no art.6º-A do CPA mas poderia não estar, na medida em que se trata de um princípio materialmente constitucional e intimamente ligado à própria ideia de Direito, de "agir de boa fé", pairando portanto sobre qualquer situação jurídica.
 Em segundo lugar, o facto do princípio da boa fé estar consagrado da mesma forma no Direito público e no Direito privado, nos mesmos trâmites e tendo em vista o mesmo tipo de finalidade (como referido, as particularidades dos casos concretos, dentro dos valores ético-jurídicos da comunidade) é, para mim, um argumento fortíssimo a favor da cada vez menor diferença entre o Direito público e o Direito privado, cujo inicial fosso tem vindo cada vez mais a ser posto em causa. Hoje, vê-se uma Administração Pública na maior parte dos casos em igualdade de posição com os particulares. De facto, a Administração hoje em dia procura proteger ao máximo esses mesmos particulares, o que não acontecia no Estado liberal, em que no Direito privado se afirmavam direitos fundamentais para todos, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1789 (igualdade, fraternidade e liberdade como lemas da Revolução Francesa), ao passo que no Direito público o indivíduo mais não era que um súbdito, um objecto à mercê do acto administrativo, que definia o direito e era coactivamente imposto.
 Sem querer ir demasiado longe com o princípio da boa fé, o que pretendo enfatizar é a ulterioridade da boa fé, como princípio inelutavelmente superior de qualquer ordem jurídica, e a sua transversalidade, que vai ao ponto de unir em diversos aspectos o Direito privado ao público, tendo o desenvolvimento da boa fé na actuação da Administração - na minha opinião - contribuído não só para uma maior protecção do particular, alargando a defesa dos seus interesses a facilitando as relações entre a Administração e os particular, mas também para a aproximação feita entre Direito privado e público, realidades tão radicalmente distintas há uns anos atrás.

1 direito, 2 direitos, 3 direitos

 O Direito Administrativo clássico, (a "Eingriffsverwaltung" de Otto Mayer), caracterizador do Estado liberal, era - como realçou várias vezes o Professor Vasco Pereira da Silva - "actocêntrico", agressivo. E era actocêntrico na medida em que suportava uma doutrina negacionista dos direitos subjectivos, servindo o acto administrativo de principal forma de actuação, definindo o Direito e sendo susceptível de imposição coactiva. Havia, portanto, uma radical diferença entre a concepção liberal de Direito privado (afirmação de direitos fundamentais de protecção e garantia do Homem) e de Direito público (indivíduo ainda como objecto público, como súbdito sujeito à vontade do acto administrativo). Esta hipocrisia de que Vasco Pereira da Silva fala foi sofrendo desenvolvimentos nos últimos 200 anos, levando à emergência de doutrinas que foram gradualmente conferindo ao particular mais e melhores meios de defesa face à Administração Pública.
 Em meados do séc. XX, Bonnard introduziu a doutrina subjectivista, apontando um direito genérico de legalidade, negando um direito subjectivo propriamente dito, concreto e particular. Percebe-se, no entanto, que esta "falsa" doutrina subjectivista (entre nós suportada por Marcelo Caetano) não levaria a qualquer desenvolvimento em termos de direitos subjectivos, visto que nada acrescentava à visão liberal da Administração Pública.
 A passagem do Estado liberal para o Estado social ("Verwaltungsstaat", em que a função administrativa se sobrepunha à legislativa, complexificando a Administração Pública) trouxe uma enorme consequência em termos da actuação do Direito Administrativo, que "passou de uma farda única para um pronto a vestir", ou seja, o Estado perde a sua dimensão central, passa a actuar através de planos, não se esgotando com o acto administrativo. Consequentemente, os italianos falam do procedimento administrativo como novo centro administrativo, ao que os alemães respondem realçando a relação jurídica administrativa como principal forma de actuação. (Vasco Pereira da Silva afasta um possível antagonismo entre as duas visões, afirmando tratar-se a relação jurídica administrativa de uma figura que por um lado precede, e por outro vai muito mais além do procedimento administrativo)).
 É neste "Zeitgeist" que surge a doutrina da posição dos particulares, de concepção bipartida, partindo da distinção entre direito subjectivo, directa e imediatamente protegido (direito de 1ª) e interesse legítimo, de protecção reflexa e difusa (direito de 2ª), através de um critério de determinação do interesse do particular. Esta doutrina formou-se em Itália, por razões processuais (o que é compreensível, na medida em que o procedimento administrativo era tido como o centro do Direito Administrativo), criando-se uma posição de vantagem através da norma, sendo que a lei regulava um dever e o particular beneficiava indirectamente desse dever. Criticamente, o Professor descreve esta doutrina como um contrassenso, onde se "deixa entrar pela janela aquilo que se proíbe pela porta". Aos exemplos dados por Freitas do Amaral no sentido de corroborar esta doutrina, distinguindo entre uma situação em que a lei atribui um subsídio (direito subjectivo) e uma situação de concurso público com quatro candidatos a um cargo (interesse legítimo), Vasco Pereira da Silva diz tratar-se de uma falácia, confundindo-se o direito de quem recebe o subsídio com os deveres da Administração Pública. (Tendo naturalmente conteúdos e extensões diferentes, continua a ser um direito subjectivo, não havendo diferença entre direitos e deveres).
 Evoluindo o tipo de Estado, evolui o Direito Administrativo. É neste contexto que - numa lógica de Estado pós-Social, em que se consagram novos direitos fundamentais como a biologia, o ambiente ou a tecnologia - aparece uma doutrina de concepção tripartida, incluindo os interesses difusos ao lado dos direitos subjectivos e dos interesses legítimos da concepção bipartida anteriormente referida. (Aos direitos de 1ª e 2ª, acrescentam-se direitos de 3ª). Na mesma linha, Vasco Pereira da Silva destaca a enorme confusão feita nesta lógica tripartida, visto que o bem objectivo é, apesar de tudo e sem dúvidas nenhumas, susceptível de utilização individual. Ou seja, à distinção feita por Hencke entre uma protecção subjectiva (direito na esfera do particular) e protecção objectiva (direito de aproveitamento global, não pertencendo à esfera de nenhum sujeito), VPS, com toda a razão, afirma tratar-se de um enorme equívoco jurídico, sendo que o facto de ser protecção objectiva não exclui a protecção subjectiva, visto que qualquer indivíduo pode alegar esse mesmo direito de protecção objectiva, fundamentado num quadro global.
 Ademais, surge-nos por La Ferrier a doutrina dos direitos reactivos, afastando a concepção tripartida por haver um único direito em causa, nomeadamente o direito de repôr a realidade, podendo o lesado exigir a restauração natural (muito "à la" Direito Civil) através do contencioso. Apesar de perceber, num primeiro ponto, que a lógica tripartida não fazia sentido, esta doutrina assentava também ela num equívoco, confundindo direitos processuais de exigir a reposição da realidade com os direitos subjectivos de ter uma protecção jurídica face a um dano causado. (É preciso compreender que a afirmação dos direitos processuais não apaga os direitos substantivos).
 Como último escopo da análise da evolução do direito subjectivo na Administração Pública, aparece-nos a doutrina da norma de protecção, em que se destaca a visão substantiva dos particulares face à Administração Pública, independentemente do particular ter uma posição de vantagem proveniente de uma norma directa, reflexa ou processual. O titular tem sempre um direito subjectivo. Quanto à definição de direito subjectivo, Buehler define-o como posição de vantagem com três condições essenciais, nomeadamente i) haver uma norma jurídica imperativa que estabelece um dever de conduta da Administração Pública; ii) que essa norma exista para proteger particulares; iii) haver a possibilidade do particular reagir contenciosamente. Posteriormente, Otto Bachof critica esta visão de direito subjectivo de Buhler, afirmando que i) é excessivo falar em norma vinculativa, devendo deslocar-se a obrigatoriedade da norma para o seu conteúdo; ii) que o Estado tem como fundamento da sua actuação a dignidade da pessoa humana, logo, qualquer norma corresponde - num Estado de Direito - à protecção de um particular; iii) que o direito de reagir contenciosamente não é uma condição, mas uma consequência do direito subjectivo.
 Um segundo desenvolvimento da doutrina da norma de protecção baseia-se num alargamento dos direitos subjectivos constitucionalmente garantidos. A norma não precisa de ser ordinária, por um lado (pode ser europeia ou internacional), enquadrando-se nos direitos de 3ª geração; e, por outro, há uma necessidade de enquadrar direitos subjectivos no âmbito das relações jurídicas, que são agora verdadeiramente multilaterais. Corresponde esta desenvolvimento a um alargamento da protecção dos particulares, a um "novo mundo" do Direito Administrativo, como realça Vasco Pereira da Silva.
 Em conclusão e respondendo ao que nos foi pedido, resta clarificar as vantagens/conveniências e as desvantagens/inconveniências das concepções tripartida e unitária do direito subjectivo dos particulares face à Administração Pública.
 Quanto à concepção tripartida, a vantagem seria o formalismo jurídico em termos de melhor divisão e distinção entre direito subjectivo, interesse legítimo e interesse difuso.
 No entanto, como acima enunciado, a concepção assenta numa enorme confusão jurídica, na medida em que independentemente da extensão e do conteúdo, a protecção feita ao particular não deixa de ser um direito subjectivo, levando a um contrassenso de se confundir direito do particular com dever da Administração Pública. Até porque hoje em dia, quem defende uma concepção tripartida já não suporta uma diferenciação de regimes (nem o nosso Direito positivo o faz, equiparando - à cautela - os regimes dos direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos). Além disso, há também que perceber que o processualismo é um instrumento - e não um substituto - do direito substantivo. Um outro inconveniente tem a ver com o facto desta doutrina ser típica do Direito Administrativo italiano, com as suas características próprias e únicas, sendo que já nem em Itália é seguida. Não fará assim muito sentido suportá-la, até porque hoje em dia, quem defende uma concepção tripartida já não exige uma diferenciação de regimes (nem o nosso Direito positivo o faz, equiparando - à cautela - os regimes dos direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos). Ora, num Estado de Direito em que nem a Constituição nem o Código de Procedimento Administrativo distinguem direito subjectivo de interesses legítimos e difusos, não devemos nós distinguir. (Percebe-se que é esta a posição do Professor, ao intitular ironicamente o capítulo que trata desta matéria de "todos diferentes, todos iguais", salientando tratar-se esta concepção unitária de uma nova base do Direito Administrativo, que contraria os traumas da infância autoritária e agressiva).
 Em relação à concepção unitária, pode-se apontar uma excessiva responsabilização da Administração Pública como desvantagem, onde os particulares depositam um peso exagerado na Administração, que deixou de ser prestadora para passar a ser "apenas" reguladora, sendo esse peso talvez a razão pela qual a simplificação da Administração Pública tarda em aparecer, crescendo tal qual um "Hulk" que não tem mais controlo na noção "prestadora-reguladora" que inicialmente quis implementar, chamando a si todo o tipo de tarefas e responsabilidades que hoje classifica como incomportáveis e desmesuradas, sobrecarregando-se e falhando no objectivo de protecção dos particulares, na medida em que cria expectativas que muito dificilmente serão cumpridas.
 Todavia, há que separar a noção unitária de direito subjectivo - que é sempre um direito, independentemente do seu conteúdo e extensão - da própria noção de Estado Social e pós-Social, que levou ao crescimento da Administração Pública. Assim, tal crítica deixa de fazer sentido. Não obstante, uma noção unitária traz maior equilíbrio e harmonia jurídica, não só porque facilita o processo da Administração no sentido de dar maior protecção aos particulares, numa fase de relações multilaterais (exemplo do pescador de chalupa), como porque corresponde à realidade jurídica, não assentando em equívocos nem em contrassensos. Por último, numa lógica de Estado pós-Social, a concepção unitária oferece uma protecção alargada do particular, em lógica paritária e de igualdade, adequada à realidade, noção essa visivelmente oposta à noção agressiva dominante no Estado liberal.

Os princípios da igualdade e da proporcionalidade e a Contribuição Extraordinária de Solidariedade


O art.º 5º do Código do Procedimento Administrativo vem consagrar como princípios gerais da Administração Pública os princípios da igualdade e da proporcionalidade.
O princípio da igualdade teve três momentos de evolução. Numa primeira fase, surgiu confundido com a generalidade da lei, ou seja, o respeito pela igualdade implicava que a lei tratasse todas as pessoas de forma igual. Esta concepção está associada às Revoluções liberais, promovidas pela burguesia contra os privilégios do clero e da nobreza e cujo grande objectivo era a cessação da distinção em função da origem social. Este entendimento dado ao princípio da igualdade era insuficiente, porque bastaria que a lei fosse aplicada fielmente, para que a igualdade fosse respeitada e, como a lei seria a expressão máxima da vontade do povo, nem sequer podia ser contestada, desde que fosse geral e abstracta. Assim, a lei não deixou de ser discriminatória, porque era aplicada indistintamente a situações muito diferentes.
Numa segunda fase, houve uma redescoberta da forma aristotélica, ou seja, a igualdade consistiria em “tratar por igual aquilo que é igual e por diferente aquilo que é diferente”. A forma aristotélica não resolve, por si só, o problema, porque é difícil determinar o que é igual e o que é diferente e, se duas realidades forem diferentes, o que significa em concreto tratá-las diferentemente? Assim, o princípio da igualdade exige que haja uma comparação baseada em critérios legítimos. O art.º 13º da Constituição da República Portuguesa e o art.º 5º do Código do Procedimento administrativo enumeram critérios nos quais não se pode basear a distinção, já que em determinado tempo da História foram usados para estabelecer distinções inaceitáveis. Contudo, isto não significa que não haja situações em que seja necessário diferenciar com base nesses critérios. Por exemplo, no acesso a uma profissão é necessário estabelecer uma distinção baseada na instrução, embora esta distinção, à primeira vista, não seja permitida pelo art.º 13º da CRP e pelo art.º 5º do CPA, mas há que ter em atenção que este critério existe por causa do circunstancialismo histórico do voto capacitário e, como tal, não é uma proibição absoluta, é uma suspeita maior.
A terceira fase de evolução é contemporânea do Estado Social, onde a igualdade é um instrumento de correcção de desigualdades. Nesta fase, a igualdade é transformada numa tarefa do Estado e a ideia de abstracção e generalidade da lei é postergada para dar lugar às discriminações positivas (por exemplo, o art.º 59º da CRP relativo aos direitos dos trabalhadores diferencia positivamente os menores, estudantes, imigrantes, mães, …).
A violação do princípio da igualdade pode ocorrer em três situações: situações iguais tratadas de forma diferente, situações diferentes tratadas de forma igual e situações diferentes tratadas desproporcionalmente.
Por sua vez, o princípio da proporcionalidade nasce com a Lei do Talião (“olho por olho, dente por dente”), sendo a primeira vez que se ajustou a acção à reacção.
Há três testes de aferição do respeito pela proporcionalidade. O teste da idoneidade que significa que todas as medidas só se justificam se forem aptas para produzir um determinado resultado em função do interessa público (avalia a eficácia). O teste da necessidade, segundo o qual a medida que deve ser adoptada não pode ser excessiva, ou seja deve ser a medida menos gravosa para os cidadãos (avalia a eficiência). Por último, o teste da proporcionalidade stricto sensu avalia o equilíbrio entre o que se sacrifica e o que se visa alcançar. Este princípio impõe que, na prossecução do interesse público, a limitação de bens ou interesses privados só possa ter lugar se estiverem verificados os três pressupostos.

O Orçamento de Estado para o ano 2013 definiu a aplicação de uma Contribuição Extraordinária de Solidariedade (CES) às pensões com valor mensal a partir de 1350€, com o argumento do combate às "falsas pensões". Contra a CES emergiu um movimento denominado “Reformados Indignados”. Considerando este movimento como ilustrativo da falta de consciência social foram inúmeras as vozes que se levantaram, mas, pretendendo apenas trazer para a análise dos princípios da igualdade e da proporcionalidade um caso actual em que a igualdade e a proporcionalidade da actuação da Administração são postas em causa, abstenho-me de tomar posição, procurando apenas apresentar os factos e as diferentes posições.
O Tribunal Constitucional deverá pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade, ou não, da CES. Os Professores Gomes Canotilho e Casalta Nabais convergem em dois pareceres autónomos, a favor do movimento dos “Reformados indignados”, defendendo a inconstitucionalidade da CES.
Por um lado, entendem que, se o Governo quer penalizar as pensões que não se baseiam nos descontos efectivos, então deve isolar essas falsas pensões, porque há muitas que foram legitimamente constituídas através de descontos dos trabalhadores e das suas entidades patronais e o Governo não fez esta distinção ao aplicar indistintamente a CES a todas as pensões de valor igual ou superior a 1350€. O professor Gomes Canotilho entende que se trata de “um imposto de classe” que discrimina sem qualquer justificação material os pensionistas, e que, nalguns casos, atinge níveis confiscatórios, porque não avalia em que medida os pensionistas fizeram descontos suficientes ou não para as pensões. Deste modo, sustentam que a CES viola o princípio da igualdade, na medida em que atinge indiscriminadamente situações jurídicas e fácticas muito diferentes.
Entendem igualmente que a CES viola o princípio da unicidade, porque se trata de um imposto e a Constituição consagra que o imposto sobre o rendimento pessoal tem de ser único, mas os pensionistas em causa acabariam por pagar dois impostos pessoais: o IRS e a CES. Defendem que não é aceitável dizer que se abre uma excepção em nome da sustentabilidade do Estado social, já que “não é preciso que haja violação do princípio da unicidade para que a sustentabilidade seja garantida. Ela pode ser assegurada sem duplicação de imposto”. Assim, entendem que não é uma medida proporcional, uma vez que o Estado tem outras alternativas de angariação de receita menos gravosas e, como tal, não seria uma medida necessária.

Este caso actual e mediático demonstra a aplicação prática destes princípios na actuação da Administração e também a necessidade de articulá-los com a conjectura económico-social. 

sábado, 23 de março de 2013

Direitos Subjectivos dos Particulares

A actividade das entidades administrativas e dos particulares desenvolve-se num contexto relacional que, na medida em que é disciplinada por normas de direito público, dá origem a relações jurídicas de direito administrativo, no âmbito das quais se exercem posições jurídicas subjectivas.
Assim, e sendo a relação jurídica o conceito central do Direito Administrativo, num Estado de Direito, de onde decorrem os direitos subjectivos, é natural que esta questão tenha sido já bastante debatida pela doutrina. Desta forma, nesta exposição tentarei esclarecer se a bipartição entre direitos subjectivos e interesses legítimos – tendo em conta a sua falta de harmonização – ainda faz sentido.
Em primeiro lugar, vou começar por uma definição, dada pelo Professor Freitas do Amaral, dos elementos que vão ser aqui discutidos:
·         Direito Subjectivo” – consiste num direito à satisfação de um interesse próprio, trata-se do poder de manter ou obter um bem da vida, ou seja, o particular tem o direito a uma decisão favorável no seu interesse;
·         Interesse Legítimo”- traduz-se numa garantia da legalidade das decisões que versem sobre um interesse próprio, neste caso, o particular conta com a garantia de que as decisões administrativas sobre um bem da vida serão sempre tomadas de acordo com a lei, isto é, sem ilegalidades.
Desta feita, importa agora determo-nos sobre as origens desta questão.
Esta surge, e citando o Professor Vasco Pereira da Silva, como consequência da “infância difícil” do Direito Administrativo, em que uma Administração agressiva intervinha junto dos particulares, os quais, face a esta, não tinham quaisquer direitos, apenas um interesse na tutela do interesse público, no fundo, eram como súbditos junto da Administração.
Daqui nasceu a categoria de interesse, como direito de segunda ordem submetido à Administração Pública.
Em Portugal, a bipartição das figuras surgiu pela influência do Contencioso Italiano. Esta bipartição tinha consequências processuais, pois, consoante estivesse em causa um direito subjectivo ou um interesse legítimo, a competência seria, respectivamente, de um tribunal comum ou de um tribunal administrativo. Entre nós, tal efeito prático nunca se chegou a verificar, tendo esta bipartição sido adoptada sem consequências práticas, apenas com sequelas a nível de diferenciação formal e teórica.
Esta teoria, em Portugal, é defendida na vertente proposta pelo Professor Freitas do Amaral, que analisarei adiante, em contraposição com a doutrina unitária.
De seguida, farei uma breve análise sobre as várias doutrinas de atribuição de vantagens aos particulares:
·         1ª Concepção (HARRIOU e LAFERRIÈRRE) - os indivíduos não possuem nenhum direito próprio contra a Administração Pública, apenas têm um interesse próximo: o particular é como um auxiliar da Administração. Contra esta teoria, observamos que esta concepção autoritária é incompatível com o Estado de Direito e com o nosso ordenamento jurídico (artigo 266º e 268º CRP);
·         2ª Concepção (MARCELLO CAETANO) – os particulares têm um direito à legalidade ou um direito reflexo. Aqui o conceito de direito subjectivo é visto de forma objectiva, é algo que resulta de uma concessão da lei, considerando-se todas as outras situações como “direitos reflexamente protegidos”, e tal como a posição anterior, isto não é compatível com o Estado de Direito;
·         3ª Concepção (ZANOBINI e FREITAS DO AMARAL) – teoria dualista com base na protecção imediata (direito subjectivo) ou mediata e indirecta (interesse legítimo). Como já foi referido, é uma teoria acolhida em Portugal, e que no decorrer da exposição irá ser contraposta à teoria unitária que defendemos;
·         4ª Concepção (RUI MEDEIROS, AROSO DE ALMEIDA e em tempos, o Professor VASCO PEREIRA DA SILVA) – postula uma contraposição entre direitos subjectivos novos ou reactivos e direitos subjectivos clássicos ou activos. Outro aspecto interessante consiste no facto de o direito do particular surgir no momento da lesão no próprio processo. Esta posição suscitou várias críticas, entre as quais, importa destacar aquela que refere a confusão entre a relação jurídica processual e a situação de real vantagem do particular (tudo se resume à ideia de reagir).

Feita esta exposição, pensamos que num Estado de Direito não faz sentido a concepção de interesses de primeira (direitos subjectivos) e de segunda (interesses legítimos), sendo estes últimos protegidos apenas na medida do interesse público. Esta distinção foi claramente feita sob os pressupostos passados, nos quais os direitos dos particulares se encontravam limitados face à Administração Pública. Pressupostos estes, que actualmente não fazem sentido, para além de que não podem ser aceites num Estado de Direito, nem por uma Constituição cuja maior preocupação é a defesa dos particulares e dos seus direitos fundamentais.
Assim, surge uma 6ª Concepção, que considera apenas uma única categoria de posições jurídicas de vantagem, englobando direitos subjectivos, interesses legítimos e interesses difusos. A chamada “Teoria da Norma de Protecção” foi criada por Bühler num contexto de Estado Liberal, tendo sido reformulada por Otto BACHOF que a transpôs para o Estado de Direito, tendo sido posteriormente alargada de maneira a abarcar a protecção de direitos fundamentais. Actualmente é adoptada pela maioria da doutrina alemã e, entre nós, pelo Professor Vasco Pereira da Silva.
Importa agora explicar a teoria da norma de protecção e como é que esta na prática funciona.
Como se sabe, a atribuição de uma posição ao sujeito pode decorrer de três maneiras distintas: atribuição ao particular de um direito subjectivo; imposição de um dever à Administração Pública ou através da tutela directa de um direito fundamental. Todavia, Bachof sublinha que nem todos os deveres da Administração correspondem ao aparecimento de uma posição de vantagem do particular, tendo de observar-se 3 requisitos: (1) a norma tem de ter caracter vinculativo, pois é na medida dessa vinculação que surge o conteúdo do direito do particular; (2) essa vinculação a um dever teria de representar um interesse do particular; (3) tem de ser conferida ao particular, como consequência da existência do direito, uma possibilidade de recurso.
Explicitadas todas as teorias, parece-nos mais conforme com os princípios do Estado de Direito considerarmos esta última. Importa questionar se há distinções práticas entre as duas teorias; e se estas nos conduzirão a resultados diferentes?
Numa aplicação da Teoria da Norma de Protecção em contraposição à Teoria da Bipartição entre direitos subjectivos e interesses legítimos, não podemos deixar de notar que tanto os primeiros, como os segundos se encontram protegidos de igual forma em termos práticos, sendo a diferença uma questão formal e não material, pois ambas traduzem uma posição de vantagem.
De acordo com a Teoria da Norma de Protecção, é errado pensar que apenas o particular que consegue obter da Administração algo em termos precisos e absolutos é que tem um direito subjectivo. Segundo o Professor Vasco Pereira da Silva, deparamo-nos então, não com uma diferença de qualidade mas sim, de quantidade; uma diferença na quantidade de maior ou menor vinculação, da qual resultará, nessa mesma medida, uma maior ou menor amplitude do direito do particular.
Tendo isto em consideração porque não adopta o legislador esta concepção em Portugal?
Não devemos considerar a questão desta forma, tendo em conta que o legislador por uma questão de princípio deve ser neutro às questões doutrinárias, de maneira que assumiu a expressão "direitos e interesses legalmente protegidos" na nossa Constituição e na lei como que uma solução de compromisso, evitando assim confusões ou mesmo a possibilidade de interpretações restritivas a esses preceitos. Visto isto, e atendendo ao que foi dito pelo Professor Vasco Pereira da Silva, a fórmula adoptada pelo legislador é suficientemente ampla para abranger todas as posições jurídicas dos particulares merecedoras de protecção, e não apenas os clássicos direitos subjectivos.
Além dos exemplos da Constituição (como nos art. 266º1, art. 268º5, ou ainda art. 271º1 CRP), ainda encontramos exemplos no CPA, como no art. 140°1 b) no qual a expressão "actos revogáveis" refere-se tanto aos direitos subjectivos como aos interesses legítimos. Podemos concluir com estes exemplos que as duas figuras são tratadas de igual forma no nosso ordenamento.
Até porque o legislador nunca usa as expressões em separado, referindo-se a situações jurídicas de vantagem, o que abona a favor da posição por nós defendida - sendo esta uma distinção, não a nível matéria,l mas formal, fará sentido que se mantenha?

Como foi referido esta bipartição foi por nós importada do direito italiano, contudo importa colocar a questão: porque importámos e mantivemos nós esta figura exclusiva do direito italiano, que só lá encontra uma explicação histórica e prática? Porque continuámos com este modelo se sempre foi alvo de crítica pelos próprios italianos?
Não obstante, é de concluir que esta questão tem de facto pouco interesse prático, tendo contudo ainda algum direito académico. Tem acima de qualquer coisa, interesse ao nível da compreensão histórica do Direito Administrativo, pois o seguimento das várias teorias apresentadas, leva a uma ilustração da sua evolução até aos nossos dias.


Sara Rodrigues da Costa, nº140110123

sexta-feira, 22 de março de 2013




TESE DA PROTECÇÃO DOS DIREITOS SUBJECTIVOS

Como foi sugerido pelo Prof. Vasco Pereira da Silva, decidi escolher a teoria da proteção e deste modo valoriza os seus aspetos positivos e anunciar de modo critico as suas desvantagens segundo o entendimento do Prof Vasco Pereira da Silva e Prof. Freitas do Amaral.

A tese da proteção dos direitos subjetivos nasceu no direito italiano por razões históricas, mais precisamente aquando da instauração do liberalismo. Esta teoria parte da distinção entre o que se entendia por direito subjetivo e interesse legítimo. O liberalismo trouxe a ideia de que as matérias administrativas cabiam a Tribunais comuns porque eram relativas a direitos esse não se integrassem então eram interesses legítimos e cabiam aos tribunais administrativos.

 É importante salientar deste logo que esta construção teve no quadro italiano um âmbito de aplicação que tinha uma dimensão processual que nunca chegou a ter em Portugal. Contudo atualmente em Itália esta teoria já não é aplicada.

O primeiro dos teorizados foi Zanobini, este defendia uma lógica de substancialização da posição dos particulares, contudo era necessário distinguir concretamente duas realidades(proteção direta e indireta do particular).

O cidadão era protegido diretamente pela ordem jurídica ,esta posição correspondia a um direito subjetivo, havia outras situações em que a norma protegia de forma indireta o particular .A lei regulava o comportamento da administração que devia ser exercido pela autoridade e daí resultaria o direito do particular.

 Nesta teoria considera-se que estamos perante conceções jurídicas substanciais, o particular já é considerado titular de direito o que não acontecia anteriormente. Distingue-se direitos de primeira(subjetivos) e segunda(interesses legítimos).

Esta doutrina contudo veio a ser criticada pois criava situações de vantagem através da aplicação da norma. Esta ideia de que haveria casos em que havia uma a proteção direta e noutros reflexa/indireta não faz sentido, na medida em que ou há proteção por parte da norma ou não há .Se há estamos perante direitos subjetivos apesar do conteúdo ser diferente.

No entanto podemos referir que ainda hoje grande parte da doutrina portuguesa diz que em uns casos há um verdadeiro direito de proteção direta e imediata e noutros casos por ser indireta não é tao forte.
Esta proteção não confere um direito subjectivo ,podemos colocar a questão de saber se não estamos a introduzir  uma negação da realidade? Esta doutrina italiana firmou-se por ordem processual. No processo administrativo que tinha sido construída a logica clássica era que o particular ia a juízo para defender a legalidade e o interesse publico. Isto devia ter tido como consequência que qualquer pessoa fosse a tribunal. O contencioso devia ter sido concebido como uma ação popular. Vem-se dizer que quem vai a juiz é o titular do interesse direto, pessoal e legitimo este interesse era o que se pretendia negar.  Este excesso de qualificações de interesse  visava deixar entrar pela janela o que se negava à porta.
 A construção do contencioso administrativo ajudou esta doutrina dos direitos administrativo o que estava em causa era um interesse personalizado que encaixava bem neste interesse protegido, diferente da proteção do titular de um direito subjetivo.

Para Prof.Vasco Pereira da Silva esta construção é um contrassenso, esta posição de vantagem pode ter conteúdo diferente mas não deixa de corresponder a uma realidade idêntica. No caso do direito subjetivo dizia-se que o particular tinha uma posição qualificada porque  a ordem jurídica lhe atribuía especificamente o direito. As outras situações corresponderiam a um dever a lei regulava um dever e o particular era beneficiado indiretamente pela defesa desse dever o que estava em causa era a tutela da legalidade. Uma norma que atribui um dever, esse dever corresponde a um direito de outrem.

Se a administração tem dever de atuar então do outro lado necessariamente temos um particular com direitos. Se se dizia que a norma criava um dever e que se criava reflexamente uma posição de vantagem não tem a ver com o direito que foi atribuído. Este argumento não tem qualquer sentido contudo foi afirmado até aos nossos dias pelo Prof .Freitas do Amaral.

Neste âmbito podemos dar como exemplo um concurso publico para Prof catedrático sabemos que nesse concurso há cinco candidatos, estes 5  candidatos não possuem direitos subjetivos mas interesses legítimos pois nenhum deles tem direito de ser provido no cargo mas apenas o particular que ganha.
No caso enunciado o Prof.Freitas do Amaral entende que não existe um direito subjectivo mas um interesse legítimo que leva a deveres da administração como analisar com imparcialidade os currículos,etc.
A falacia é distinguir os direitos do particular e o direitos de todos os outros candidatos. É verdade que o direito ao cargo só surge depois de terminado o concurso mas ao lado desse direitos há direitos que tem todos os particulares que concorreram para o cargo. Há um direito mais amplo para quem ganha o concurso e há direitos diversificados para os restantes candidatos.

Não faz sentidos que uma norma que vem proteger os interesses particulares vir-se dizer que de um lado há um direito e do outro há um interesse legitimo. Estamos sempre perante verdadeiros direitos subjetivos o conteúdo é diferente pois o dever vai sendo diferente.

Inês Casanova de Almeida

Administração vs. Particulares – Uma luta Tripartida ou Unitária


O Direito Administrativo nasce marcado pela autoridade, por uma Administração agressiva que não reconhece aos particulares quaisquer direitos de se proteger. Otto Mayer é um dos autores que se refere à Administração desta forma, enquanto entidade superior que vê o particular como um súbdito e um objecto do poder.

Mas com o evoluir dos tempos esta visão traumática do direito administrativo foi sendo, aos poucos, afastada, sendo impensável não reconhecer direitos aos particulares no Estado Liberal, apesar de, na prática, este continuar a ser um objecto nas mãos da Administração. Hoje, porém, não é posta em questão a existência de direitos subjetivos dos particulares. A questão hoje é relativa às divergências doutrinais que surgem face a uma visão tripartida dos direitos dos particulares, na qual se distinguem dos direitos subjetivos os interesses legítimos (ou interesses legalmente protegidos) e os interesses difusos, e uma visão unitária em que só existem direitos subjetivos e a todos se aplica o mesmo regime.

Com Guido Zanobini surge a distinção entre direito subjectivo e interesse legítimo porque se verificava que em certas situações o sujeito era diretamente protegido pelo Estado, numa situação de vantagem, e noutros a norma regulava o procedimento da administração do qual resultava, indiretamente, um comportamento face ao particular e a sua proteção (situações jurídicas substantivas – particular deixa de ser um objecto do poder para passar a ser titular do direito). O direito subjectivo trata-se de um interesse direta e imediatamente protegido, ou seja, é o próprio objecto do direito em questão, dando ao seu titular a possibilidade de obter a sua tutela jurisdicional plena. São os direitos criados por atos jurídicos do direito público, incluindo direitos fundamentais, e direitos constituídos por atos jurídicos de direito privado. Por outro lado, o interesse legalmente protegido merece proteção imediata da ordem jurídica mas subalternamente ao direito subjectivo, isto é, existe pela atribuição de certos poderes e faculdades como de reagir contra condutas contrárias ao interesse responsabilizar civilmente quem o tiver violado mas não havendo proteção direta desse interesse também não há a possibilidade da sua realização jurisdicional plena. Deste modo, aos dois tipos de direito deveriam ser aplicadas diferentes jurisdições: juiz comum julgava violações dos direitos subjetivos; juízes administrativos julgavam os interesses legítimos.

Com o surgimento do estado pós-social surgiram novas perspectivas relativas ao direito, nomeadamente sobre direitos respeitantes a todas as pessoas em geral, da colectividade no seu todo como os relativos ao ambiente, consumo, saúde pública – interesses difusos. A falha neste pensamento é que mesmo sendo alvo de interesse comum, estes são direitos que podem ser exercidos individualmente e bens que podem ser aproveitados individualmente reconduzindo a direitos subjetivos. Até porque há que distinguir um direito geral objectivo que existe além de mim dos meus direitos particulares enquanto indivíduo.
Anteriormente quem ia a tribunal ia defender a legalidade de certa atuação face ao interesse público, agora quem vai a tribunal quer proteger um interesse direto, pessoal e legítimo, quer proteger o seu próprio direito contra a atuação da Administração – ao dever de um corresponde o direito do outro. O direito do particular é, então, um direito de ver reposta a legalidade, de reagir perante a violação do seu direito e as lesões que sejam causadas na sua esfera jurídica. É por isto que não deve ser considerada qualquer distinção, o particular tem direitos e tem direito de os ver respeitados pela administração e de reagir (teoria do direito reativo) se isso não se verificar. Segundo Buhler há três condições para haver um direito subjectivo: existência de uma norma jurídica que estabeleça um dever de atuar da Administração; essa norma exista para proteger os particulares; poder do particular para reagir processualmente para defender o seu direito. Mas esta visão corresponde a um contexto de Administração mais agressiva, distinta da que temos hoje que conjuga essa atuação de polícia com uma atuação prestacional e infra-estrutural. Mas isto para dizer que as normas têm sempre uma parte vinculada e uma parte discricionária, há direitos a proteger, tendo de se aplicar essa atuação à realidade em questão. A possibilidade que é dada ao particular de reagir pressupõe sempre um direito. Quer se trate de direitos subjetivos que são diretamente prejudicados por certo ato, numa relação bilateral particular vs. Administração, quer aqueles que sejam afetados por consequências multilaterais dessa atuação administrativa que devem também ter a possibilidade de se defender. Gera-se, assim, um conjunto de relações jurídicas que ligam diversos particulares à atividade administrativa, dizendo alguns autores que uns adquirem direitos subjetivos, outros adquirem interesses legítimos e outros, ainda, interesses difusos. Na minha opinião isto não é verdade. Se estamos perante um sistema que defende a igualdade e equidade não tem sentido considerar que no caso de uns temos direitos subjetivos enquanto no caso de outros temos meros interesses legítimos face a uma certa situação. Sendo assim, todos devem ser considerados direitos subjetivos.

Um conceito amplo de direito subjectivo, engloba não só os interesses legalmente protegidos mas também os interesses difusos (necessidades colectivas colectivamente sentidas quer seja no domínio do ambiente ou do ordenamento do território). A única distinção que é feita dentro desta é da intensidade da tutela das posições dos particulares titulares dos direitos que variam. A distinção que é feita na Constituição da República Portuguesa no artigo 266º/1 entre “direitos subjetivos” e “interesses legalmente protegidos” é meramente teórica uma vez que o regime aplicado a ambas se equipara, ou, na opinião de autores como Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos, não há sequer qualquer diferença nesse regime. Hoje verificamos um sistema unificado relativo às relações substantivas.

Concluindo, podemos verificar que o trauma do Direito Administrativo por falta de tutela dos direitos dos particulares foi superado. Hoje, o Direito Administrativo regula as relações jurídicas entre sujeitos em posições equiparadas de igualdade, de afirmação dos sujeitos face à Administração. Isto porque se acredita que o interesse público só pode ser protegido e alcançado perante o respeito dos interesses de cada particular.

quarta-feira, 20 de março de 2013

A concepção tripartida - mais um resquício dos traumas do Direito Administrativo?

  A querela entre a concepção tripartida e a concepção unitária das posições jurídicas substantivas dos particulares face à Administração prende-se com a natureza jurídica destas posições, nomeadamente com a necessidade de saber se os direitos subjectivos se distinguem dos interesses legítimos e dos interesses difusos, ou se há apenas direitos subjectivos, que podem ter um conteúdo mais ou menos amplo.
  Por influência do Direito italiano, começou a distinguir-se os direito subjectivos dos interesses legítimos. Em Itália, esta distinção tinha implicações processuais, porque determinava se a matéria era do conhecimento de um tribunal comum ou de um tribunal administrativo.
  Surgiram também teorias que admitiam a existência de “direitos de primeira” e de “direitos de segunda”, uns que gozavam de protecção imediata (os direitos subjectivos), outros que gozavam de protecção reflexa (os interesses legítimos). Esta distinção acarreta um efeito perverso, uma vez que o particular não pode ser visto como um “bom escuteiro”, um colaborador da Administração Pública que defende em tribunal o interesse público e a legalidade e vê o seu interesse ser protegido reflexamente. Nem se diga que quem vai a juízo é um titular de um interesse directo, pessoal e legítimo (como defendido por Maurice Hauriou e, mais tarde, em Portugal, por Marcello Caetano). Esta ideia revela um excesso de qualificações que acaba por “deixar entrar pela janela o que não se deixou entrar pela porta”. Assim, se a norma atribui uma posição de vantagem, esta posição pode ter um conteúdo diversificado, mas não deixa de corresponder à mesma realidade, ou seja, a um direito subjectivo.
  Na doutrina portuguesa, a concepção tripartida é defendida por vários autores, de entre os quais, o Professor Freitas do Amaral que, a título de exemplo, distingue o direito subjectivo de progressão na carreira de um funcionário público, da situação de existirem cinco candidatos num concurso público: estes não seriam titulares de direitos subjectivos, mas teriam interesses legítimos como o cumprimento por parte da Administração dos deveres de imparcialidade, justiça, legalidade, …
   Porém e em rigor, não há nenhuma distinção entre interesses legítimos e direitos subjectivos. O que há são direitos com conteúdo distinto, porque se há um dever atribuído à Administração, então significa que como correlato tem de haver direitos dos particulares. Se assim não o fosse, como admitir que o particular lesado tenha direito a uma indemnização pelos prejuízos causados pela perda da oportunidade de obter um resultado favorável no concurso se esta decorrer da violação dos deveres da Administração?
  Nos finais do século XIX, defendida por Buhler e posteriormente Bachof, surgiu a teoria da norma de protecção que assentava em três requisitos para haver um direito subjectivo: primeiro, que houvesse uma norma jurídica totalmente vinculativa que estabelecesse um dever de actuar para a Administração, segundo, que essa norma protege-se também interesses do particular e, por último, que o particular pudesse garantir o seu direito através do acesso aos tribunais. Esta teoria veio unificar a concepção dos direitos subjectivos, mas correspondia a uma visão limitada da Administração como uma Administração agressiva. Mais tarde, Bachof veio reestruturar esta teoria ao entender que não há actos totalmente vinculados, nem totalmente discricionários Assim, em relação ao primeiro requisito basta que a norma crie um dever, não tendo de ser totalmente vinculativa. Em relação ao segundo requisito, qualquer norma que estabeleça um dever cria um direito e, em terceiro lugar, no que respeita ao acesso aos tribunais, este não é uma condição para a existência de um direito, é antes uma consequência. 
   Nos anos 70, surgiram novos direitos fundamentais (ambiente, consumo, saúde pública, …) que foram apontados como uma terceira categoria – os interesses difusos. Estes incidem sobre realidades insusceptíveis de apropriação pelo homem. Contudo, não se pode confundir o bem objectivo com o seu uso individual, ou seja, não é possível integrar o ambiente na esfera jurídica de um particular, mas isso não significa que não possa ser usado individualmente, para benefício próprio e que, por isso, haja um direito subjectivo. Para além disso, o regime de responsabilidade civil da Administração permite que os particulares possam agir em juízo contra a Administração com fundamento na defesa de posições jurídicas de vantagem, ainda que estas digam respeito a um bem indivisível ou inapropriável, como o ambiente. Sendo isto verdade, então os interesses difusos correspondem também a direitos subjectivos conferidos aos particulares.
  Assim, a tripartição assenta em equívocos jurídicos, porque o particular é sempre titular de direitos subjectivos e isto não significa apelar à teoria alemã dos direitos reactivos que, embora não distinga direitos de primeira e de segunda, defende que o indivíduo teria direito a reagir processualmente contra lesões provocadas pela Administração e, por isso, assenta também num equívoco que é o de confundir direitos processuais com direitos substantivos. Sempre que há uma posição de vantagem que resulte de uma norma jurídica que atribui direitos, deveres a outrem ou interesses colectivos, há um direito subjectivo. A variação diz apenas respeito ao seu conteúdo. Bauer, Schmidt e Assman vêm alargar a noção de direito subjectivo, fazendo com este deixe de se ligar somente à norma ordinária, para se ligar a toda a ordem jurídica. Este alargamento permite enquadrar os direitos de terceira geração, os denominados interesses difusos pela concepção tripartida, como apenas uma das posições que integram a relação jurídica administrativa, que deixou de ser bilateral, para ser multilateral.
    Deste modo, as posições substantivas dos particulares seguem o lema de “todos diferentes, todos iguais”, porque correspondem a uma categoria única – os direitos subjectivos.
  Como tal, embora na doutrina nacional sejam muitos os defensores de uma teoria tripartida, esta concepção não faz sentido no Direito português, ademais porque não tem utilidade prática, uma vez que o legislador não se ocupa em separado dos direitos subjectivos e dos interesses legalmente protegidos – o regime aplicável é sempre o mesmo e usa os dois termos numa denominação conjunta (veja-se os artigos 268º nº 3, 4 e 5 da CRP ou os artigos 4º, 12º, 53º e 140/1 b) do Código do Procedimento Administrativo). Mesmo nos casos em que não usa as duas expressões, utiliza expressões de carácter genérico que abrangem as duas concepções, como “direitos, liberdades e garantias” ou “direitos dos particulares”.
   Em tom de conclusão, não se encontra um fundamento para que a doutrina continue a acolher a concepção tripartida e ainda menos se compreende quando em Itália, o único país onde esta concepção tinha relevância prática, já foi abandonada. A concepção tripartida não é mais do que contaminar a teoria geral do direito com os traumas do Direito Administrativo.


Bibliografia:
Silva, Vasco Pereira da – Em busca do acto administrativo perdido, Almedina, Coimbra, 2003



terça-feira, 12 de março de 2013

La Primauté du Système Français


É absolutamente indispensável à subsequente exposição sobre o Sistema Administrativo Francês que se faça um enquadramento histórico do seu aparecimento.

A época do absolutismo régio em França caracteriza-se por uma centralização de poderes na pessoa do Rei. A esta centralização de poderes corresponde uma paralela confusão dos mesmos. 
A Revolução Francesa é o grande marco de viragem para um novo tipo de Estado. Era absolutamente necessário um aparelho administrativo disciplinado, obediente e eficaz para impor as novas ideias, implementar as reformas políticas, económicas e sociais.

Um dos pontos que caracteriza o sistema francês é a separação de poderes, trazida pela Revolução Francesa, nomeadamente através da criação de tribunais administrativos, em 1799, de forma a impedir a intervenção do poder judicial no funcionamento da Administração Pública e vice versa. Com esta finalidade surgiu em 1790 e 1795 a lei que proibia os juízes de conhecerem de litígios contra as autoridades administrativas. Assim,  a Administração seria totalmente heterodeterminada pela lei e, como tal, não seria necessária a intervenção judicial. Contudo, o que na realidade veio a suceder foi que se gerou uma “confusão” entre o poder administrativo e judicial em que o juiz era administrador e o administrador era juiz, porque acreditava-se que julgar a Administração era ainda administrar e não julgar. No entanto, a ideia de subtrair o poder administrativo ao crivo dos tribunais foi garantir que estes não iriam perverter ou desviar o exercício administrativo e assegurar a independência da Administração. Bernard Pacteau afirma que a promiscuidade entre justiça e administração é uma “riqueza para o Contencioso, graças à experiência que fornece ao juiz e ao reforço do poder, e por isso de autoridade, para o Conselho de Estado, tendo um peso decisivo na qualidade da nossa vida pública”.


A segunda característica que marca o sistema francês é o facto de ser um Estado de Direito, apesar de haver uma certa soberba da Administração Pública em algumas fases, nos dias que correm é notória a devolução aos indivíduos de um garante primordial nas suas relações com a Administração. São os direitos dos particulares o centro da relação entre estes e a Administração, renovando esta o controlo jurisdicional de “tutela efectiva e protecção integral” daqueles direitos  Inegavelmente, a Declaração Universal dos Direitos do Homem reforça este princípio.

Em face oposta, e ao contrário do que se possa aparentemente pensar, em Inglaterra existem regras especiais (“official law”) apenas aplicáveis a autoridades públicas (ex. princípio da imunidade da Coroa em matéria de responsabilidade ou o do privilégio do corpo diplomático e da polícia), logo no modelo britânico já existiam regras e procedimentos especiais para o corpo administrativo;

Adjectiva-se, em igual medida, pela centralização. As autoridades locais embora com personalidade jurídica própria, não passam de instrumentos administrativos do poder central. Como vantagem, pode apontar-se a unidade e coesão na Administração. 

Outro dos pontos basilares é a subordinação aos tribunais administrativos, o que significa que as garantias dos cidadãos são efectivadas através dos tribunais administrativos e não por intermédio dos tribunais comuns. Os tribunais administrativos não gozam de plena jurisdição face à administração, uma vez que só podem anular o acto praticado pela Administração se for ilegal, não podendo condená-la ou obrigá-la a adoptar certo comportamento. Esta característica parece reforçar a não intromissão da função judicial na função administrativa. Tal significa que a Administração está sujeita a tribunais no verdadeiro sentido da palavra, pois são titulares de poder judicial (e não a órgãos da Administração). A fiscalização é submetida aos tribunais administrativos, não a comuns. Neste sentido, os órgãos administrativos especiais tornam-se verdadeiros tribunais especializados em administração pública. Logo, as garantias dos cidadãos são efectivadas através dos tribunais administrativos e não pelos tribunais comuns, ou seja, os tribunais que julgam a administração e a sua relação com os particulares, no sistema francês, têm uma maior competência, fruto da formação jurídica especializada dos juízes, ao contrário do que sucede no sistema inglês.


Não obstante de tudo isto, o sistema francês pauta-se pela sujeição da Administração ao Direito Administrativo. Se prossegue o interesse público, não pode agir em pé de igualdade com os particulares. A actuação do Estado na prossecução do interesse público não se assemelha à actuação dos particulares, tem de ser legitimada por regras próprias que permitam sobrepor esse interesse ao mero interesse particular. Apesar de tudo isto, não é descabido defender que os agentes oriundos do Direito Privado actuem tendo em vista, à partida, o interesse público (Parcerias Público- Privadas).

Já no modelo de Terras de Sua Majestade, não existem, do ponto de vista teórico, privilégios de autoridade pública, tal é incompatível com a função primordial  do Estado na prossecução do interesse público, já que esta busca não se assemelha à actuação dos particulares. Tem de ser igualmente legitimada por regras próprias que permitam sobrepor esse interesse ao mero interesse particular.


Por último, tem como característica o privilégio de execução prévia, permitia à Administração executar as suas decisões por autoridade própria, empregando, se necessário for, meios coactivos. Isto deve-se ao facto de a Administração não se encontrar na mesma posição dos particulares porque a administração prossegue o interesse público e não o mero interesse particular. Detém poderes especiais de autoridade, mas como contrapartida encontra-se limitada por um lote de deveres e restrições que a fazem cumprir o interesse público, como é o caso do princípio da legalidade. No fundo, trata-se da utilização de meios coactivos próprios, para executar as suas decisões, sem ter de recorrer aos tribunais. Há uma autoridade própria que permite à Administração tal actuação. O privilégio de execução prévia permite uma maior celeridade na actuação da Administração. 

Em contraponto, Na esfera anglo-saxónica, por via da execução judicial das decisões administrativas (a Administração não podia executar as suas decisões por autoridade própria, ou seja, não possuía poder coactivo perante os particulares), há um risco enorme de demora da actuação que tem como papel primário satisfazer as necessidades colectivas em tempo útil. 

Actualmente, a promiscuidade entre Justiça e Administração tem vindo a ser ultrapassada. Embora tenha sido o sistema  sistema com a infância mais traumática, no séc. XX, houve mudanças que o aproximaram do modelo inglês clássico. Houve uma perda do carácter de total centralização (com a transferência de funções do Estado para as regiões, a eleição livre dos órgãos autárquicos, a diminuição dos poderes dos perfeitos, a europeização, entre outros pontos que possibilitaram esta clivagem), passou-se a actuar em diversos domínios sob a égide do direito privado (como é o caso das empresas públicas no domínio do direito comercial, dos contratos públicos, etc.) e muitas das decisões da Administração passaram a só poder ser executadas se um tribunal administrativo, a pedido de um particular interessado, a tal não se opuser.

Ocorreram vários passos que contribuíram para ultrapassar os traumas do sistema administrativo em França. Destaca-se o art.º 20 da lei de 23 de Maio de 1872  que consagrou em concreto a transição da "justiça reservada" para uma "justiça delegada", ou seja, as decisões do Conselho de Estado deixaram de ser meros pareceres sujeitos a homologação pelo Chefe de Estado e o Acórdão Caddot de 1889, onde é reconhecido o direito de indemnização em caso de responsabilidade administrativa. Com o advento do Estado social, a Administração deixa de ser meramente executiva e agressiva, para passar a ser constitutiva de direitos e prestadora de serviços, ou seja, surge um novo modelo de relacionamento entre a Administração e os particulares que se caracteriza por uma maior bilateralidade e permanência, os particulares são elevados a sujeitos de direito e o Direito Administrativo passa de um “direito dos privilégios especiais da administração“ para um “direito regulador das relações administrativas”. Destaca-se também a decisão de 22 de Julho de 1980 do Conselho Constitucional que equipara as naturezas da jurisdição administrativa e da jurisdição ordinária, estabelecendo que a independência dos juízes tem valor constitucional, a decisão de 23 de Janeiro de 1987 do Conselho Constitucional que consagra que todos os cidadãos têm direito a um recurso efectivo perante um juiz independente e com plenos poderes face à Administração, o Decreto n° 2008-225 de 6 de Março de 2008 relativo à organização e funcionamento do Conselho de Estado que consagra juridicamente a separação entre as suas funções consultivas e jurisdicionais e a revisão constitucional de 21 de Julho de 2008, nomeadamente o aditamento do art.º 61º da Constituição que consagra que as partes podem contestar, durante o decurso de uma acção num tribunal administrativo, a aplicação de uma norma que considerem atingir os direitos e liberdades constitucionalmente garantidos, competindo ao Conselho de Estado julgar quanto à necessidade de transmitir ao Conselho Constitucional a questão da inconstitucionalidade suscitada. 

Por contraposição, o sistema inglês fracassou. Os traumas começam a surgir numa fase em que nos restantes países da Europa, nomeadamente em França, se começavam a ultrapassar os traumas da infância difícil, ou seja, no surgimento do Estado Social, isto é, não sofrendo do “pecado original o direito administrativo inglês vem a sofrer de uma “delinquência senil precoce”. O sistema inglês é como a eterna promessa que adia a sua revelação e, quando dá por si, tomba num calabouço, estando completamente desacreditada no meio social onde, outrora, podia ter emergido. 
O próprio sistema inglês sofre de problemas de personalidade, a julgar pela sucessiva incoerência que a caracteriza na actualidade, na medida em que: Passa a haver uma maior centralização administrativa (criação de vários serviços locais do Estado, transferência de tarefas antes executadas a nível local para órgãos a nível regional, mais sujeitos ao Governo); no direito regulador surgiram inúmeras leis administrativas por causa do incremento das tarefas do Estado; surgiram os administrative tribunals, que são órgãos administrativos independentes dos tribunais que se destinam a decidir em matérias administrativas ( a)não são tribunais administrativos, mas as suas decisões são obrigatórias para os particulares; b)têm poder de fiscalização da administração; c)intervêm conjuntamente com os tribunais anteriormente existentes (courts), embora a última palavra caiba sempre aos tribunais.).
Concluindo, correntemente, a maior diferença entre os dois sistemas refere-se ao tipo de controlo jurisdicional admitido por cada um (França – tribunais administrativos; Inglaterra – tribunais comuns), formando uma significativa fronteira, visto que o sistema francês é um bastião maior na prossecução e defesa dos interesses dos particulares, porque, como já foi referido, os centros de poder judicial têm maior competência e conhecimento para ajuizar a maioria das problemáticas. 


Influência no Direito Português

A influência francesa no sistema administrativo português era inevitável. Já por seu turno, o inglês era de dificultada aplicação. Cabe assim referir os factores que a ela deram lugar:

- Culturais:  
I. Portugal e França são dois países latinos e de tradições romanas.
II. A cultura, a arte, a língua, a filosofia, as ideologias e a doutrina gaulesas eram as mais seguidas e divulgadas pela Europa e Portugal, no momento em que em Portugal se toma a iniciativa de se seguir o sistema francês.
III. O Reino Unido como Estado especial no tocante às suas características e vicissitudes relativamente à Europa Continental.

- Histórico-políticas: 
I. As mentalidades e vicissitudes políticas e cívicas lusas e francesas aproximam-se. São necessários mecanismos coercivos e um sistema rígido no qual a Lei é a fonte primacial contra abusos do poder. Repare-se que ambos foram reinados por reis absolutistas e despotas esclarecidos, o que no RU não se sucedeu, pelo menos da mesma forma. O Reino Unido pautou-se por um espírito, se não total, pelo menos parcialmente reformista e não revolucionário como nos outros dois países o qual favoreceu uma gradual defesa dos particulares face ao poder político.(Magna Charta, Bill of Rights)
II. Revolução Francesa de 1789 e o Liberalismo em Portugal, daí a Revolução de 1820.
III. Invasões Francesas.

- Jurídicas:
I. Tanto Portugal e França fazem parte da família Civil Law, no qual a fonte principal é a Lei e não o Costume ou a Jurisprudência como nos sistemas anglo-saxónicos (Reino Unido e E.U.A por exemplo). 

Todos estes factos levaram a que Portugal adoptasse um sistema de tipo francês e não o sistema francês propriamente dito, neste sentido afirma o Professor Marcello Caetano.
Em França separam-se a Administração e a Justiça. As tarefas executivas incidem sobre órgãos administrativos e a função jurisdicional aos Tribunais, com as Leis de Agosto de 1790. O mesmo acontece em Portugal com a Constituição de 1822 no seu título II:

A influência francesa deu-se com o especial contributo de Mouzinho da Silveira, também ele seguidor das reformas sofridas pelo Direito Administrativo de Napoleão. 

Procedeu a uma necessária consagração dos princípios liberais em legislação ordinária, o que facultou o acesso mais eficiente dos funcionários da Administração Local e Central. Em suma, as suas reformas principais foram:
a) A Diferenciação das Funções Administrativa e Jurisdicional;
b) Separação entre os órgãos administrativos e os Tribunais;
c) Centralização de cariz francês cuja máquina administrativa é obediente e eficaz (com vista a evitar a proliferação de centros de decisão, com base nas potenciais ameaças ao Liberalismo recém consagrado e susceptíveis de abandonar os seus ideais). 

Contudo, relativamente a esta última alínea,o Professor Freitas do Amaral crê que não vingou devido à resistência por parte das comunidades locais. Assim prevaleceu uma descentraliazação administrativa, ainda que, nestes países a autonomia concedida às pessoas colectivas, para satisfazerem as necessidades colectivas, não é tão vasta como no Reino Unido, o que, por si só, não é um factor menos bom pelo facto de que, como fora supra dito, os circunstancialismos de cada ordem jurídica e de cada Estado definem e até explicam as escolhas e as vias tomadas.

É mister referir que o sistema em análise hoje não é tão centralizado como fora com Napoleão: há poderes locais autónomos, os poderes dos prefeitos são diminutos(em Portugal o órgão Governador Civil foi extinguido) e foram sendo feitas sucessivas reformas descentralizadoras. Todavia, em último caso, a Administração Central predomina sobre a Local.
O princípio do Estado de Direito, estando subjacente o princípio da legalidade e competência na administração é seguido a partir da Constituição de 1822.
É criado um Conselho de Estado(1845) à imagem do Conseil D'Etat francês que vai consolidar um sistema de garantias dos particulares assim como o Supremo Tribunal Administrativo(1876).
Com o Estado Social, tanto em França, como em Portugal a Administração torna-se prestadora e, não só, na lógica liberal, agressiva. Decorrente das garantias, em Portugal os particulares são vistos como titulares de direitos subjectivos dos quais se podem fazer valer, não sendo já considerados como objectos do Direito Administrativo, que já não é visto como um simples ramo de protecção da Administração Pública.
Este sistema é de influência vasta na Europa Continental, acrescendo, para além de França e Portugal, Itália, Espanha e Alemanha, ainda que com variantes acentuadas. 

Nota: O texto, embora Francisco Camacho surja como autor, foi redigido em igual medida pelos elementos do grupo (Carolina Botelho Sampaio, Inês Chorro, Rodrigo Lobo Machado e Tomás Mourão-Ferreira).