sábado, 4 de maio de 2013

Hipótese prática


A câmara municipal de agua azul é constituída pelo presidente e 4 vereadores. Em 15/03/2013 um vereador está hospitalizado tendo sido submetido na véspera a uma complexa operação cirúrgica. Dois vereadores estavam no Brasil por causa da geminação do município com o município amazonense de água verde. Na manhã daquele dia o presidente da câmara recebe um requerimento de António informando-o que um troço do aqueduto romano existente na sede do conselho abriu fendas e ameaça ruir para cima da casa onde habita com a sua família e pedindo providências urgentes.
Sem mais tardança, o presidente da câmara redige e assina um despacho ordenando aos serviços municipais que procedam à demolição preventiva e provisória do troço do aqueduto e transportem todas as pedras resultantes dessa operação para um local situado no sopé da colina onde se encontra instalado o aterro municipal para o depósito de lixos industriais.
Em 26/03/2013 realiza-se a primeira reunião ordinária da câmara. Só teve lugar nessa data visto só na véspera se ter apresentado o vereador que fora sujeito a intervenção cirúrgica continuando os outros dois no Brasil. Com os votos do presidente e de um vereador e com o voto contrario de outro vereador, a câmara tomou a seguinte deliberação: "pelas razões relatadas na proposta de ratificação do senhor presidente, designadamente no que toca ao risco corrido pelo município e por António e sua família, ratifica-se o despacho presidencial de 15/03/2013."
Na reunião ordinária de 02/04/2013 a câmara municipal por 3 votos a favor e contra os do presidente e de um vereador, delibera revogar a anterior deliberação camarária de ratificação do despacho do presidente que havia sido tomada em 26/03/2013. A deliberação revogatória é votada sem que o assunto figurasse na ordem do dia da reunião e sem que se tivessem efectuado quaisquer diligencias prévias. Fundamentos da deliberação revogatória:
A) não ter sido previamente ouvido o presidente, com o parecer obrigatório da direcção geral do património
B) Falta de fundamentação do acto revogado
C) as pedras resultantes da demolição haverem sido armazenadas num local pouco conveniente dada a proximidade de um aterro de lixos industriais relativamente ao qual não há certeza de que se irá manter estanque
Em 11/06/2013 o presidente da câmara impugna a deliberação camarária de 02/04/2013 junto do tribunal administrativo competente.


1- Despacho do presidente da câmara a ordenar a demolição do aqueduto:
Competência:
Uma vez que se trata de uma câmara municipal, aplica-se a Lei das Autarquias Locais. O artigo 64, n5, c) estabelece que é da competência da Câmara Municipal ordenar a demolição de construções que ameacem ruína, desde que haja uma vistoria. Neste caso, há um aqueduto que se encontra em perigo de ruir, pelo que a competência seria da câmara. No entanto, de acordo com o artigo 68, n3 LAL, o presidente pode praticar quaisquer actos da competência da câmara, desde que as circunstâncias sejam excepcionais e urgentes e esta não possa reunir extraordinariamente. Ora, estamos perante uma situação urgente, uma  vez que o aqueduto ameaça ruir e destruir a habitação de António e da sua família. Para além disso, não era possível reunir extraordinariamente a câmara, uma vez que, havendo apenas 4 vereadores, 2 estavam no Brasil e um estava hospitalizado, pelo que, de acordo com o artigo 89 da LAL, que exige maioria legal do número de membros (3), não havia quórum. Assim sendo, o presidente tinha competência para ordenar a demolição do aqueduto.
No entanto, houve algumas regras que não parecem ter sido cumpridas: o artigo exige, para que se possa ordenar a demolição de edifícios em ruínas, uma vistoria prévia obrigatória, que neste caso não foi realizada. Era uma situação de urgência pelo que se poderia ter verificado uma excepção e dispensado a vistoria para solucionar o problema em tempo útil.

Aspectos materiais:
A demolição do aqueduto pode ter violado o princípio da proporcionalidade, uma vez que, através da realização de obras no aqueduto, ter-se-ia tutelado o interesse de António e da família sem destruir um monumento. Tendo-se verificado a violação deste princípio, o acto do presidente da câmara seria nulo.


2- A câmara municipal ratificou o despacho do presidente da câmara em reunião ordinária:
Competência:
O artigo 68, n3 LAL exige, para que o acto seja ratificado, que o acto seja aprovado na primeira reunião ordinária após a prática do acto, pelo que a câmara era competente.

Regras procedimentais e materiais:
 É necessário ver se foi respeitado o quórum: o artigo 89,  n1 LAL exige a maioria do número legal de membros para deliberar. Estavam presentes 2 dos vereadores e o presidente num total de 5 membros, pelo que havia maioria do número legal. O despacho foi assim ratificado.


3- Posteriormente, a deliberação de ratificação do despacho é revogada numa reunião ordinária, sem fazer parte da ordem do dia:

Competência:
De acordo com o artigo 142, n1 do CPA, os autores dos actos administrativos são também competentes para os revogar. Neste caso, o autor da ratificação foi a câmara, que era competente, pelo que também será competente para revogar o acto. Há uma querela doutrinal relativamente ao significado de "autor", nomeadamente no que respeita aos actos praticados por órgãos incompetentes. No entanto, como já se viu, a câmara era competente pelo que a questão não se coloca.

 Aspectos formais:
A revogação não fazia parte da ordem do dia. Foi assim violado o estabelecido no artigo 87, n1, a) LAL: os assuntos da ordem do dia devem ser apresentados pelo órgão competente, por escrito, com o mínimo de 5 dias de antecedência. Também não foi respeitado o artigo 19 do CPA, que exige que pelo menos dois terços dos membros reconheçam a urgência da deliberação imediata sobre assuntos que não constem da ordem do dia. Como tal não parece ter sucedido, o acto padece de ilegalidade. Não é nulo, uma vez que não cabe no artigo 133 do CPA, pelo que será anulável (artigo 135 CPA).
Para a tomada desta deliberação estavam presentes 5 membros, tendo 3 votado a favor da revogação e 2 contra, pelo que havia quórum, de acordo com o artigo 89 LAL.

Os fundamentos da revogação foram os seguintes:
A) não ter sido previamente ouvido o presidente, com o parecer obrigatório da direcção geral do património
Os artigos 98 e 99 do CPA regulam a necessidade de pareceres. De acordo com o primeiro, os pareceres podem ser obrigatórios ou vinculativos e consideram-se obrigatórios caso não haja disposição em contrário. O artigo 99 estabelece, no n3, que se o parecer for obrigatório e não vinculativo e não for emitido dentro do prazo, o procedimento pode seguir e ser decidido sem o parecer, salvo disposição expressa em contrário. Tratando-se de uma situação de urgência, admite-se que o procedimento siga sem ter o presidente que esperar pelo parecer.

B) as pedras resultantes da demolição haverem sido armazenadas num local pouco conveniente dada a proximidade de um aterro de lixos industriais relativamente ao qual não há certeza de que se irá manter estanque.
Poderá haver violação do princípio da prossecução do interesse público, uma vez que será do interesse público conservar as pedras para um eventual posterior restauro do monumento. Para além disso, a proximidade de um aterro de lixos que provavelmente não se manterá estanque não será o local adequado a conservar os restos do aqueduto, pelo que poderá ter sido também violado o princípio da proporcionalidade.

O acto de revogação da ratificação do despacho pela câmara padece de uma invalidade: a revogação não fazia parte da ordem do dia. O acto pode ser revogado, uma vez que não está previsto no artigo 139. Assim, de acordo com o artigo 141 do CPA, o acto só pode ser revogado com fundamento na sua invalidade e dentro do prazo do recurso contencioso que terminar em último lugar, ou seja, um ano. O acto pode ser revogado pelo autor ou pelo superior hierárquico, desde que não seja da competência exclusiva do subalterno (artigo 142).

4- Impugnação da revogação da câmara pelo presidente junto do tribunal administrativo:
De acordo com o artigo 9, n1 CPTA, qualquer pessoa tem legitimidade para propor processos ao tribunal, pelo que o presidente da câmara teria competência. 

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