quinta-feira, 28 de março de 2013

1 direito, 2 direitos, 3 direitos

 O Direito Administrativo clássico, (a "Eingriffsverwaltung" de Otto Mayer), caracterizador do Estado liberal, era - como realçou várias vezes o Professor Vasco Pereira da Silva - "actocêntrico", agressivo. E era actocêntrico na medida em que suportava uma doutrina negacionista dos direitos subjectivos, servindo o acto administrativo de principal forma de actuação, definindo o Direito e sendo susceptível de imposição coactiva. Havia, portanto, uma radical diferença entre a concepção liberal de Direito privado (afirmação de direitos fundamentais de protecção e garantia do Homem) e de Direito público (indivíduo ainda como objecto público, como súbdito sujeito à vontade do acto administrativo). Esta hipocrisia de que Vasco Pereira da Silva fala foi sofrendo desenvolvimentos nos últimos 200 anos, levando à emergência de doutrinas que foram gradualmente conferindo ao particular mais e melhores meios de defesa face à Administração Pública.
 Em meados do séc. XX, Bonnard introduziu a doutrina subjectivista, apontando um direito genérico de legalidade, negando um direito subjectivo propriamente dito, concreto e particular. Percebe-se, no entanto, que esta "falsa" doutrina subjectivista (entre nós suportada por Marcelo Caetano) não levaria a qualquer desenvolvimento em termos de direitos subjectivos, visto que nada acrescentava à visão liberal da Administração Pública.
 A passagem do Estado liberal para o Estado social ("Verwaltungsstaat", em que a função administrativa se sobrepunha à legislativa, complexificando a Administração Pública) trouxe uma enorme consequência em termos da actuação do Direito Administrativo, que "passou de uma farda única para um pronto a vestir", ou seja, o Estado perde a sua dimensão central, passa a actuar através de planos, não se esgotando com o acto administrativo. Consequentemente, os italianos falam do procedimento administrativo como novo centro administrativo, ao que os alemães respondem realçando a relação jurídica administrativa como principal forma de actuação. (Vasco Pereira da Silva afasta um possível antagonismo entre as duas visões, afirmando tratar-se a relação jurídica administrativa de uma figura que por um lado precede, e por outro vai muito mais além do procedimento administrativo)).
 É neste "Zeitgeist" que surge a doutrina da posição dos particulares, de concepção bipartida, partindo da distinção entre direito subjectivo, directa e imediatamente protegido (direito de 1ª) e interesse legítimo, de protecção reflexa e difusa (direito de 2ª), através de um critério de determinação do interesse do particular. Esta doutrina formou-se em Itália, por razões processuais (o que é compreensível, na medida em que o procedimento administrativo era tido como o centro do Direito Administrativo), criando-se uma posição de vantagem através da norma, sendo que a lei regulava um dever e o particular beneficiava indirectamente desse dever. Criticamente, o Professor descreve esta doutrina como um contrassenso, onde se "deixa entrar pela janela aquilo que se proíbe pela porta". Aos exemplos dados por Freitas do Amaral no sentido de corroborar esta doutrina, distinguindo entre uma situação em que a lei atribui um subsídio (direito subjectivo) e uma situação de concurso público com quatro candidatos a um cargo (interesse legítimo), Vasco Pereira da Silva diz tratar-se de uma falácia, confundindo-se o direito de quem recebe o subsídio com os deveres da Administração Pública. (Tendo naturalmente conteúdos e extensões diferentes, continua a ser um direito subjectivo, não havendo diferença entre direitos e deveres).
 Evoluindo o tipo de Estado, evolui o Direito Administrativo. É neste contexto que - numa lógica de Estado pós-Social, em que se consagram novos direitos fundamentais como a biologia, o ambiente ou a tecnologia - aparece uma doutrina de concepção tripartida, incluindo os interesses difusos ao lado dos direitos subjectivos e dos interesses legítimos da concepção bipartida anteriormente referida. (Aos direitos de 1ª e 2ª, acrescentam-se direitos de 3ª). Na mesma linha, Vasco Pereira da Silva destaca a enorme confusão feita nesta lógica tripartida, visto que o bem objectivo é, apesar de tudo e sem dúvidas nenhumas, susceptível de utilização individual. Ou seja, à distinção feita por Hencke entre uma protecção subjectiva (direito na esfera do particular) e protecção objectiva (direito de aproveitamento global, não pertencendo à esfera de nenhum sujeito), VPS, com toda a razão, afirma tratar-se de um enorme equívoco jurídico, sendo que o facto de ser protecção objectiva não exclui a protecção subjectiva, visto que qualquer indivíduo pode alegar esse mesmo direito de protecção objectiva, fundamentado num quadro global.
 Ademais, surge-nos por La Ferrier a doutrina dos direitos reactivos, afastando a concepção tripartida por haver um único direito em causa, nomeadamente o direito de repôr a realidade, podendo o lesado exigir a restauração natural (muito "à la" Direito Civil) através do contencioso. Apesar de perceber, num primeiro ponto, que a lógica tripartida não fazia sentido, esta doutrina assentava também ela num equívoco, confundindo direitos processuais de exigir a reposição da realidade com os direitos subjectivos de ter uma protecção jurídica face a um dano causado. (É preciso compreender que a afirmação dos direitos processuais não apaga os direitos substantivos).
 Como último escopo da análise da evolução do direito subjectivo na Administração Pública, aparece-nos a doutrina da norma de protecção, em que se destaca a visão substantiva dos particulares face à Administração Pública, independentemente do particular ter uma posição de vantagem proveniente de uma norma directa, reflexa ou processual. O titular tem sempre um direito subjectivo. Quanto à definição de direito subjectivo, Buehler define-o como posição de vantagem com três condições essenciais, nomeadamente i) haver uma norma jurídica imperativa que estabelece um dever de conduta da Administração Pública; ii) que essa norma exista para proteger particulares; iii) haver a possibilidade do particular reagir contenciosamente. Posteriormente, Otto Bachof critica esta visão de direito subjectivo de Buhler, afirmando que i) é excessivo falar em norma vinculativa, devendo deslocar-se a obrigatoriedade da norma para o seu conteúdo; ii) que o Estado tem como fundamento da sua actuação a dignidade da pessoa humana, logo, qualquer norma corresponde - num Estado de Direito - à protecção de um particular; iii) que o direito de reagir contenciosamente não é uma condição, mas uma consequência do direito subjectivo.
 Um segundo desenvolvimento da doutrina da norma de protecção baseia-se num alargamento dos direitos subjectivos constitucionalmente garantidos. A norma não precisa de ser ordinária, por um lado (pode ser europeia ou internacional), enquadrando-se nos direitos de 3ª geração; e, por outro, há uma necessidade de enquadrar direitos subjectivos no âmbito das relações jurídicas, que são agora verdadeiramente multilaterais. Corresponde esta desenvolvimento a um alargamento da protecção dos particulares, a um "novo mundo" do Direito Administrativo, como realça Vasco Pereira da Silva.
 Em conclusão e respondendo ao que nos foi pedido, resta clarificar as vantagens/conveniências e as desvantagens/inconveniências das concepções tripartida e unitária do direito subjectivo dos particulares face à Administração Pública.
 Quanto à concepção tripartida, a vantagem seria o formalismo jurídico em termos de melhor divisão e distinção entre direito subjectivo, interesse legítimo e interesse difuso.
 No entanto, como acima enunciado, a concepção assenta numa enorme confusão jurídica, na medida em que independentemente da extensão e do conteúdo, a protecção feita ao particular não deixa de ser um direito subjectivo, levando a um contrassenso de se confundir direito do particular com dever da Administração Pública. Até porque hoje em dia, quem defende uma concepção tripartida já não suporta uma diferenciação de regimes (nem o nosso Direito positivo o faz, equiparando - à cautela - os regimes dos direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos). Além disso, há também que perceber que o processualismo é um instrumento - e não um substituto - do direito substantivo. Um outro inconveniente tem a ver com o facto desta doutrina ser típica do Direito Administrativo italiano, com as suas características próprias e únicas, sendo que já nem em Itália é seguida. Não fará assim muito sentido suportá-la, até porque hoje em dia, quem defende uma concepção tripartida já não exige uma diferenciação de regimes (nem o nosso Direito positivo o faz, equiparando - à cautela - os regimes dos direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos). Ora, num Estado de Direito em que nem a Constituição nem o Código de Procedimento Administrativo distinguem direito subjectivo de interesses legítimos e difusos, não devemos nós distinguir. (Percebe-se que é esta a posição do Professor, ao intitular ironicamente o capítulo que trata desta matéria de "todos diferentes, todos iguais", salientando tratar-se esta concepção unitária de uma nova base do Direito Administrativo, que contraria os traumas da infância autoritária e agressiva).
 Em relação à concepção unitária, pode-se apontar uma excessiva responsabilização da Administração Pública como desvantagem, onde os particulares depositam um peso exagerado na Administração, que deixou de ser prestadora para passar a ser "apenas" reguladora, sendo esse peso talvez a razão pela qual a simplificação da Administração Pública tarda em aparecer, crescendo tal qual um "Hulk" que não tem mais controlo na noção "prestadora-reguladora" que inicialmente quis implementar, chamando a si todo o tipo de tarefas e responsabilidades que hoje classifica como incomportáveis e desmesuradas, sobrecarregando-se e falhando no objectivo de protecção dos particulares, na medida em que cria expectativas que muito dificilmente serão cumpridas.
 Todavia, há que separar a noção unitária de direito subjectivo - que é sempre um direito, independentemente do seu conteúdo e extensão - da própria noção de Estado Social e pós-Social, que levou ao crescimento da Administração Pública. Assim, tal crítica deixa de fazer sentido. Não obstante, uma noção unitária traz maior equilíbrio e harmonia jurídica, não só porque facilita o processo da Administração no sentido de dar maior protecção aos particulares, numa fase de relações multilaterais (exemplo do pescador de chalupa), como porque corresponde à realidade jurídica, não assentando em equívocos nem em contrassensos. Por último, numa lógica de Estado pós-Social, a concepção unitária oferece uma protecção alargada do particular, em lógica paritária e de igualdade, adequada à realidade, noção essa visivelmente oposta à noção agressiva dominante no Estado liberal.

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