quinta-feira, 28 de março de 2013

Princípio da Boa Fé

 A actuação da Administração Pública hoje em dia envolve sempre uma certa discricionariedade e uma determinada vinculação, manifestando-se esta dupla vertente nos três conceitos de actuação que o Professor Vasco Pereira da Silva descreve como constituindo um ciclo que se repete constantemente em qualquer acto da Administração, nomeadamente i) a interpretação, ii) a aplicação aos factos e iii) a decisão. Há, portanto, uma actuação com base na lei, pelos critérios e parâmetros legais, mas que envolve necessariamente uma margem de decisão, discricionária. Ora, é nesse âmbito que entram os princípios constitucionais, que aparecem ao lado da competência e do fim legal da actuação como vínculos de controlo da discricionariedade da Administração Pública. Princípios esses que permitem um controlo ampliado e material da própria actuação.
 De entre os princípios consagrados nos artigos 266º e 267º da Constituição, assim como no artigo 3º e seguintes do Código do Procedimento Administrativo, optei pelo princípio da boa fé, que agora irei comentar.
 A boa fé fascina-me acima de tudo pela sua transversalidade, tendo um campo de aplicação enorme - apesar de aparentemente ser um conceito algo indeterminado - tanto no Direito privado como no Direito público. Exprime uma preocupação para com as particularidades do caso concreto, de acordo com os valores ético-jurídicos da comunidade, materializando-se nos subprincípios da tutela da confiança e da primazia da materialidade subjacente. Ora, são esses mesmos dois subprincípios que o art.6º-A, alínea a) e b) do CPA consagra, da mesma forma e na mesma lógica que são consagrados no Direito privado. Visa tutelar a confiança dos particulares, impedindo que se criem falsas expectativas que possam resultar num dano na esfera do particular, da mesma forma que procura sempre sobrepor a materialidade à formalidade, condenando um exercício formalmente correcto mas materialmente distorcido do direito (a figura do abuso do direito é um excelente exemplo disso mesmo).
 É também um princípio que directa ou indirectamente "entra" em qualquer tipo de situação jurídica, desde o mais simples contrato à mais diversificada relação jurídica, pública ou privada. Por conseguinte,  realço dois pontos:
 Em primeiro lugar, a boa fé está no art. 266º/2 da Constituição e no art.6º-A do CPA mas poderia não estar, na medida em que se trata de um princípio materialmente constitucional e intimamente ligado à própria ideia de Direito, de "agir de boa fé", pairando portanto sobre qualquer situação jurídica.
 Em segundo lugar, o facto do princípio da boa fé estar consagrado da mesma forma no Direito público e no Direito privado, nos mesmos trâmites e tendo em vista o mesmo tipo de finalidade (como referido, as particularidades dos casos concretos, dentro dos valores ético-jurídicos da comunidade) é, para mim, um argumento fortíssimo a favor da cada vez menor diferença entre o Direito público e o Direito privado, cujo inicial fosso tem vindo cada vez mais a ser posto em causa. Hoje, vê-se uma Administração Pública na maior parte dos casos em igualdade de posição com os particulares. De facto, a Administração hoje em dia procura proteger ao máximo esses mesmos particulares, o que não acontecia no Estado liberal, em que no Direito privado se afirmavam direitos fundamentais para todos, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1789 (igualdade, fraternidade e liberdade como lemas da Revolução Francesa), ao passo que no Direito público o indivíduo mais não era que um súbdito, um objecto à mercê do acto administrativo, que definia o direito e era coactivamente imposto.
 Sem querer ir demasiado longe com o princípio da boa fé, o que pretendo enfatizar é a ulterioridade da boa fé, como princípio inelutavelmente superior de qualquer ordem jurídica, e a sua transversalidade, que vai ao ponto de unir em diversos aspectos o Direito privado ao público, tendo o desenvolvimento da boa fé na actuação da Administração - na minha opinião - contribuído não só para uma maior protecção do particular, alargando a defesa dos seus interesses a facilitando as relações entre a Administração e os particular, mas também para a aproximação feita entre Direito privado e público, realidades tão radicalmente distintas há uns anos atrás.

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