quarta-feira, 20 de março de 2013

A concepção tripartida - mais um resquício dos traumas do Direito Administrativo?

  A querela entre a concepção tripartida e a concepção unitária das posições jurídicas substantivas dos particulares face à Administração prende-se com a natureza jurídica destas posições, nomeadamente com a necessidade de saber se os direitos subjectivos se distinguem dos interesses legítimos e dos interesses difusos, ou se há apenas direitos subjectivos, que podem ter um conteúdo mais ou menos amplo.
  Por influência do Direito italiano, começou a distinguir-se os direito subjectivos dos interesses legítimos. Em Itália, esta distinção tinha implicações processuais, porque determinava se a matéria era do conhecimento de um tribunal comum ou de um tribunal administrativo.
  Surgiram também teorias que admitiam a existência de “direitos de primeira” e de “direitos de segunda”, uns que gozavam de protecção imediata (os direitos subjectivos), outros que gozavam de protecção reflexa (os interesses legítimos). Esta distinção acarreta um efeito perverso, uma vez que o particular não pode ser visto como um “bom escuteiro”, um colaborador da Administração Pública que defende em tribunal o interesse público e a legalidade e vê o seu interesse ser protegido reflexamente. Nem se diga que quem vai a juízo é um titular de um interesse directo, pessoal e legítimo (como defendido por Maurice Hauriou e, mais tarde, em Portugal, por Marcello Caetano). Esta ideia revela um excesso de qualificações que acaba por “deixar entrar pela janela o que não se deixou entrar pela porta”. Assim, se a norma atribui uma posição de vantagem, esta posição pode ter um conteúdo diversificado, mas não deixa de corresponder à mesma realidade, ou seja, a um direito subjectivo.
  Na doutrina portuguesa, a concepção tripartida é defendida por vários autores, de entre os quais, o Professor Freitas do Amaral que, a título de exemplo, distingue o direito subjectivo de progressão na carreira de um funcionário público, da situação de existirem cinco candidatos num concurso público: estes não seriam titulares de direitos subjectivos, mas teriam interesses legítimos como o cumprimento por parte da Administração dos deveres de imparcialidade, justiça, legalidade, …
   Porém e em rigor, não há nenhuma distinção entre interesses legítimos e direitos subjectivos. O que há são direitos com conteúdo distinto, porque se há um dever atribuído à Administração, então significa que como correlato tem de haver direitos dos particulares. Se assim não o fosse, como admitir que o particular lesado tenha direito a uma indemnização pelos prejuízos causados pela perda da oportunidade de obter um resultado favorável no concurso se esta decorrer da violação dos deveres da Administração?
  Nos finais do século XIX, defendida por Buhler e posteriormente Bachof, surgiu a teoria da norma de protecção que assentava em três requisitos para haver um direito subjectivo: primeiro, que houvesse uma norma jurídica totalmente vinculativa que estabelecesse um dever de actuar para a Administração, segundo, que essa norma protege-se também interesses do particular e, por último, que o particular pudesse garantir o seu direito através do acesso aos tribunais. Esta teoria veio unificar a concepção dos direitos subjectivos, mas correspondia a uma visão limitada da Administração como uma Administração agressiva. Mais tarde, Bachof veio reestruturar esta teoria ao entender que não há actos totalmente vinculados, nem totalmente discricionários Assim, em relação ao primeiro requisito basta que a norma crie um dever, não tendo de ser totalmente vinculativa. Em relação ao segundo requisito, qualquer norma que estabeleça um dever cria um direito e, em terceiro lugar, no que respeita ao acesso aos tribunais, este não é uma condição para a existência de um direito, é antes uma consequência. 
   Nos anos 70, surgiram novos direitos fundamentais (ambiente, consumo, saúde pública, …) que foram apontados como uma terceira categoria – os interesses difusos. Estes incidem sobre realidades insusceptíveis de apropriação pelo homem. Contudo, não se pode confundir o bem objectivo com o seu uso individual, ou seja, não é possível integrar o ambiente na esfera jurídica de um particular, mas isso não significa que não possa ser usado individualmente, para benefício próprio e que, por isso, haja um direito subjectivo. Para além disso, o regime de responsabilidade civil da Administração permite que os particulares possam agir em juízo contra a Administração com fundamento na defesa de posições jurídicas de vantagem, ainda que estas digam respeito a um bem indivisível ou inapropriável, como o ambiente. Sendo isto verdade, então os interesses difusos correspondem também a direitos subjectivos conferidos aos particulares.
  Assim, a tripartição assenta em equívocos jurídicos, porque o particular é sempre titular de direitos subjectivos e isto não significa apelar à teoria alemã dos direitos reactivos que, embora não distinga direitos de primeira e de segunda, defende que o indivíduo teria direito a reagir processualmente contra lesões provocadas pela Administração e, por isso, assenta também num equívoco que é o de confundir direitos processuais com direitos substantivos. Sempre que há uma posição de vantagem que resulte de uma norma jurídica que atribui direitos, deveres a outrem ou interesses colectivos, há um direito subjectivo. A variação diz apenas respeito ao seu conteúdo. Bauer, Schmidt e Assman vêm alargar a noção de direito subjectivo, fazendo com este deixe de se ligar somente à norma ordinária, para se ligar a toda a ordem jurídica. Este alargamento permite enquadrar os direitos de terceira geração, os denominados interesses difusos pela concepção tripartida, como apenas uma das posições que integram a relação jurídica administrativa, que deixou de ser bilateral, para ser multilateral.
    Deste modo, as posições substantivas dos particulares seguem o lema de “todos diferentes, todos iguais”, porque correspondem a uma categoria única – os direitos subjectivos.
  Como tal, embora na doutrina nacional sejam muitos os defensores de uma teoria tripartida, esta concepção não faz sentido no Direito português, ademais porque não tem utilidade prática, uma vez que o legislador não se ocupa em separado dos direitos subjectivos e dos interesses legalmente protegidos – o regime aplicável é sempre o mesmo e usa os dois termos numa denominação conjunta (veja-se os artigos 268º nº 3, 4 e 5 da CRP ou os artigos 4º, 12º, 53º e 140/1 b) do Código do Procedimento Administrativo). Mesmo nos casos em que não usa as duas expressões, utiliza expressões de carácter genérico que abrangem as duas concepções, como “direitos, liberdades e garantias” ou “direitos dos particulares”.
   Em tom de conclusão, não se encontra um fundamento para que a doutrina continue a acolher a concepção tripartida e ainda menos se compreende quando em Itália, o único país onde esta concepção tinha relevância prática, já foi abandonada. A concepção tripartida não é mais do que contaminar a teoria geral do direito com os traumas do Direito Administrativo.


Bibliografia:
Silva, Vasco Pereira da – Em busca do acto administrativo perdido, Almedina, Coimbra, 2003



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