terça-feira, 12 de março de 2013

La Primauté du Système Français


É absolutamente indispensável à subsequente exposição sobre o Sistema Administrativo Francês que se faça um enquadramento histórico do seu aparecimento.

A época do absolutismo régio em França caracteriza-se por uma centralização de poderes na pessoa do Rei. A esta centralização de poderes corresponde uma paralela confusão dos mesmos. 
A Revolução Francesa é o grande marco de viragem para um novo tipo de Estado. Era absolutamente necessário um aparelho administrativo disciplinado, obediente e eficaz para impor as novas ideias, implementar as reformas políticas, económicas e sociais.

Um dos pontos que caracteriza o sistema francês é a separação de poderes, trazida pela Revolução Francesa, nomeadamente através da criação de tribunais administrativos, em 1799, de forma a impedir a intervenção do poder judicial no funcionamento da Administração Pública e vice versa. Com esta finalidade surgiu em 1790 e 1795 a lei que proibia os juízes de conhecerem de litígios contra as autoridades administrativas. Assim,  a Administração seria totalmente heterodeterminada pela lei e, como tal, não seria necessária a intervenção judicial. Contudo, o que na realidade veio a suceder foi que se gerou uma “confusão” entre o poder administrativo e judicial em que o juiz era administrador e o administrador era juiz, porque acreditava-se que julgar a Administração era ainda administrar e não julgar. No entanto, a ideia de subtrair o poder administrativo ao crivo dos tribunais foi garantir que estes não iriam perverter ou desviar o exercício administrativo e assegurar a independência da Administração. Bernard Pacteau afirma que a promiscuidade entre justiça e administração é uma “riqueza para o Contencioso, graças à experiência que fornece ao juiz e ao reforço do poder, e por isso de autoridade, para o Conselho de Estado, tendo um peso decisivo na qualidade da nossa vida pública”.


A segunda característica que marca o sistema francês é o facto de ser um Estado de Direito, apesar de haver uma certa soberba da Administração Pública em algumas fases, nos dias que correm é notória a devolução aos indivíduos de um garante primordial nas suas relações com a Administração. São os direitos dos particulares o centro da relação entre estes e a Administração, renovando esta o controlo jurisdicional de “tutela efectiva e protecção integral” daqueles direitos  Inegavelmente, a Declaração Universal dos Direitos do Homem reforça este princípio.

Em face oposta, e ao contrário do que se possa aparentemente pensar, em Inglaterra existem regras especiais (“official law”) apenas aplicáveis a autoridades públicas (ex. princípio da imunidade da Coroa em matéria de responsabilidade ou o do privilégio do corpo diplomático e da polícia), logo no modelo britânico já existiam regras e procedimentos especiais para o corpo administrativo;

Adjectiva-se, em igual medida, pela centralização. As autoridades locais embora com personalidade jurídica própria, não passam de instrumentos administrativos do poder central. Como vantagem, pode apontar-se a unidade e coesão na Administração. 

Outro dos pontos basilares é a subordinação aos tribunais administrativos, o que significa que as garantias dos cidadãos são efectivadas através dos tribunais administrativos e não por intermédio dos tribunais comuns. Os tribunais administrativos não gozam de plena jurisdição face à administração, uma vez que só podem anular o acto praticado pela Administração se for ilegal, não podendo condená-la ou obrigá-la a adoptar certo comportamento. Esta característica parece reforçar a não intromissão da função judicial na função administrativa. Tal significa que a Administração está sujeita a tribunais no verdadeiro sentido da palavra, pois são titulares de poder judicial (e não a órgãos da Administração). A fiscalização é submetida aos tribunais administrativos, não a comuns. Neste sentido, os órgãos administrativos especiais tornam-se verdadeiros tribunais especializados em administração pública. Logo, as garantias dos cidadãos são efectivadas através dos tribunais administrativos e não pelos tribunais comuns, ou seja, os tribunais que julgam a administração e a sua relação com os particulares, no sistema francês, têm uma maior competência, fruto da formação jurídica especializada dos juízes, ao contrário do que sucede no sistema inglês.


Não obstante de tudo isto, o sistema francês pauta-se pela sujeição da Administração ao Direito Administrativo. Se prossegue o interesse público, não pode agir em pé de igualdade com os particulares. A actuação do Estado na prossecução do interesse público não se assemelha à actuação dos particulares, tem de ser legitimada por regras próprias que permitam sobrepor esse interesse ao mero interesse particular. Apesar de tudo isto, não é descabido defender que os agentes oriundos do Direito Privado actuem tendo em vista, à partida, o interesse público (Parcerias Público- Privadas).

Já no modelo de Terras de Sua Majestade, não existem, do ponto de vista teórico, privilégios de autoridade pública, tal é incompatível com a função primordial  do Estado na prossecução do interesse público, já que esta busca não se assemelha à actuação dos particulares. Tem de ser igualmente legitimada por regras próprias que permitam sobrepor esse interesse ao mero interesse particular.


Por último, tem como característica o privilégio de execução prévia, permitia à Administração executar as suas decisões por autoridade própria, empregando, se necessário for, meios coactivos. Isto deve-se ao facto de a Administração não se encontrar na mesma posição dos particulares porque a administração prossegue o interesse público e não o mero interesse particular. Detém poderes especiais de autoridade, mas como contrapartida encontra-se limitada por um lote de deveres e restrições que a fazem cumprir o interesse público, como é o caso do princípio da legalidade. No fundo, trata-se da utilização de meios coactivos próprios, para executar as suas decisões, sem ter de recorrer aos tribunais. Há uma autoridade própria que permite à Administração tal actuação. O privilégio de execução prévia permite uma maior celeridade na actuação da Administração. 

Em contraponto, Na esfera anglo-saxónica, por via da execução judicial das decisões administrativas (a Administração não podia executar as suas decisões por autoridade própria, ou seja, não possuía poder coactivo perante os particulares), há um risco enorme de demora da actuação que tem como papel primário satisfazer as necessidades colectivas em tempo útil. 

Actualmente, a promiscuidade entre Justiça e Administração tem vindo a ser ultrapassada. Embora tenha sido o sistema  sistema com a infância mais traumática, no séc. XX, houve mudanças que o aproximaram do modelo inglês clássico. Houve uma perda do carácter de total centralização (com a transferência de funções do Estado para as regiões, a eleição livre dos órgãos autárquicos, a diminuição dos poderes dos perfeitos, a europeização, entre outros pontos que possibilitaram esta clivagem), passou-se a actuar em diversos domínios sob a égide do direito privado (como é o caso das empresas públicas no domínio do direito comercial, dos contratos públicos, etc.) e muitas das decisões da Administração passaram a só poder ser executadas se um tribunal administrativo, a pedido de um particular interessado, a tal não se opuser.

Ocorreram vários passos que contribuíram para ultrapassar os traumas do sistema administrativo em França. Destaca-se o art.º 20 da lei de 23 de Maio de 1872  que consagrou em concreto a transição da "justiça reservada" para uma "justiça delegada", ou seja, as decisões do Conselho de Estado deixaram de ser meros pareceres sujeitos a homologação pelo Chefe de Estado e o Acórdão Caddot de 1889, onde é reconhecido o direito de indemnização em caso de responsabilidade administrativa. Com o advento do Estado social, a Administração deixa de ser meramente executiva e agressiva, para passar a ser constitutiva de direitos e prestadora de serviços, ou seja, surge um novo modelo de relacionamento entre a Administração e os particulares que se caracteriza por uma maior bilateralidade e permanência, os particulares são elevados a sujeitos de direito e o Direito Administrativo passa de um “direito dos privilégios especiais da administração“ para um “direito regulador das relações administrativas”. Destaca-se também a decisão de 22 de Julho de 1980 do Conselho Constitucional que equipara as naturezas da jurisdição administrativa e da jurisdição ordinária, estabelecendo que a independência dos juízes tem valor constitucional, a decisão de 23 de Janeiro de 1987 do Conselho Constitucional que consagra que todos os cidadãos têm direito a um recurso efectivo perante um juiz independente e com plenos poderes face à Administração, o Decreto n° 2008-225 de 6 de Março de 2008 relativo à organização e funcionamento do Conselho de Estado que consagra juridicamente a separação entre as suas funções consultivas e jurisdicionais e a revisão constitucional de 21 de Julho de 2008, nomeadamente o aditamento do art.º 61º da Constituição que consagra que as partes podem contestar, durante o decurso de uma acção num tribunal administrativo, a aplicação de uma norma que considerem atingir os direitos e liberdades constitucionalmente garantidos, competindo ao Conselho de Estado julgar quanto à necessidade de transmitir ao Conselho Constitucional a questão da inconstitucionalidade suscitada. 

Por contraposição, o sistema inglês fracassou. Os traumas começam a surgir numa fase em que nos restantes países da Europa, nomeadamente em França, se começavam a ultrapassar os traumas da infância difícil, ou seja, no surgimento do Estado Social, isto é, não sofrendo do “pecado original o direito administrativo inglês vem a sofrer de uma “delinquência senil precoce”. O sistema inglês é como a eterna promessa que adia a sua revelação e, quando dá por si, tomba num calabouço, estando completamente desacreditada no meio social onde, outrora, podia ter emergido. 
O próprio sistema inglês sofre de problemas de personalidade, a julgar pela sucessiva incoerência que a caracteriza na actualidade, na medida em que: Passa a haver uma maior centralização administrativa (criação de vários serviços locais do Estado, transferência de tarefas antes executadas a nível local para órgãos a nível regional, mais sujeitos ao Governo); no direito regulador surgiram inúmeras leis administrativas por causa do incremento das tarefas do Estado; surgiram os administrative tribunals, que são órgãos administrativos independentes dos tribunais que se destinam a decidir em matérias administrativas ( a)não são tribunais administrativos, mas as suas decisões são obrigatórias para os particulares; b)têm poder de fiscalização da administração; c)intervêm conjuntamente com os tribunais anteriormente existentes (courts), embora a última palavra caiba sempre aos tribunais.).
Concluindo, correntemente, a maior diferença entre os dois sistemas refere-se ao tipo de controlo jurisdicional admitido por cada um (França – tribunais administrativos; Inglaterra – tribunais comuns), formando uma significativa fronteira, visto que o sistema francês é um bastião maior na prossecução e defesa dos interesses dos particulares, porque, como já foi referido, os centros de poder judicial têm maior competência e conhecimento para ajuizar a maioria das problemáticas. 


Influência no Direito Português

A influência francesa no sistema administrativo português era inevitável. Já por seu turno, o inglês era de dificultada aplicação. Cabe assim referir os factores que a ela deram lugar:

- Culturais:  
I. Portugal e França são dois países latinos e de tradições romanas.
II. A cultura, a arte, a língua, a filosofia, as ideologias e a doutrina gaulesas eram as mais seguidas e divulgadas pela Europa e Portugal, no momento em que em Portugal se toma a iniciativa de se seguir o sistema francês.
III. O Reino Unido como Estado especial no tocante às suas características e vicissitudes relativamente à Europa Continental.

- Histórico-políticas: 
I. As mentalidades e vicissitudes políticas e cívicas lusas e francesas aproximam-se. São necessários mecanismos coercivos e um sistema rígido no qual a Lei é a fonte primacial contra abusos do poder. Repare-se que ambos foram reinados por reis absolutistas e despotas esclarecidos, o que no RU não se sucedeu, pelo menos da mesma forma. O Reino Unido pautou-se por um espírito, se não total, pelo menos parcialmente reformista e não revolucionário como nos outros dois países o qual favoreceu uma gradual defesa dos particulares face ao poder político.(Magna Charta, Bill of Rights)
II. Revolução Francesa de 1789 e o Liberalismo em Portugal, daí a Revolução de 1820.
III. Invasões Francesas.

- Jurídicas:
I. Tanto Portugal e França fazem parte da família Civil Law, no qual a fonte principal é a Lei e não o Costume ou a Jurisprudência como nos sistemas anglo-saxónicos (Reino Unido e E.U.A por exemplo). 

Todos estes factos levaram a que Portugal adoptasse um sistema de tipo francês e não o sistema francês propriamente dito, neste sentido afirma o Professor Marcello Caetano.
Em França separam-se a Administração e a Justiça. As tarefas executivas incidem sobre órgãos administrativos e a função jurisdicional aos Tribunais, com as Leis de Agosto de 1790. O mesmo acontece em Portugal com a Constituição de 1822 no seu título II:

A influência francesa deu-se com o especial contributo de Mouzinho da Silveira, também ele seguidor das reformas sofridas pelo Direito Administrativo de Napoleão. 

Procedeu a uma necessária consagração dos princípios liberais em legislação ordinária, o que facultou o acesso mais eficiente dos funcionários da Administração Local e Central. Em suma, as suas reformas principais foram:
a) A Diferenciação das Funções Administrativa e Jurisdicional;
b) Separação entre os órgãos administrativos e os Tribunais;
c) Centralização de cariz francês cuja máquina administrativa é obediente e eficaz (com vista a evitar a proliferação de centros de decisão, com base nas potenciais ameaças ao Liberalismo recém consagrado e susceptíveis de abandonar os seus ideais). 

Contudo, relativamente a esta última alínea,o Professor Freitas do Amaral crê que não vingou devido à resistência por parte das comunidades locais. Assim prevaleceu uma descentraliazação administrativa, ainda que, nestes países a autonomia concedida às pessoas colectivas, para satisfazerem as necessidades colectivas, não é tão vasta como no Reino Unido, o que, por si só, não é um factor menos bom pelo facto de que, como fora supra dito, os circunstancialismos de cada ordem jurídica e de cada Estado definem e até explicam as escolhas e as vias tomadas.

É mister referir que o sistema em análise hoje não é tão centralizado como fora com Napoleão: há poderes locais autónomos, os poderes dos prefeitos são diminutos(em Portugal o órgão Governador Civil foi extinguido) e foram sendo feitas sucessivas reformas descentralizadoras. Todavia, em último caso, a Administração Central predomina sobre a Local.
O princípio do Estado de Direito, estando subjacente o princípio da legalidade e competência na administração é seguido a partir da Constituição de 1822.
É criado um Conselho de Estado(1845) à imagem do Conseil D'Etat francês que vai consolidar um sistema de garantias dos particulares assim como o Supremo Tribunal Administrativo(1876).
Com o Estado Social, tanto em França, como em Portugal a Administração torna-se prestadora e, não só, na lógica liberal, agressiva. Decorrente das garantias, em Portugal os particulares são vistos como titulares de direitos subjectivos dos quais se podem fazer valer, não sendo já considerados como objectos do Direito Administrativo, que já não é visto como um simples ramo de protecção da Administração Pública.
Este sistema é de influência vasta na Europa Continental, acrescendo, para além de França e Portugal, Itália, Espanha e Alemanha, ainda que com variantes acentuadas. 

Nota: O texto, embora Francisco Camacho surja como autor, foi redigido em igual medida pelos elementos do grupo (Carolina Botelho Sampaio, Inês Chorro, Rodrigo Lobo Machado e Tomás Mourão-Ferreira).

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