sábado, 4 de maio de 2013

Resolução da Hipótese Prática nº4


Acto jurídico em questão: despacho do presidente da câmara

Questões de competência
O presidente da câmara não é competente para conceder licença para instalação de fábricas de produtos tóxicos, uma vez que tal competência não está prevista no art.68º da LAL. Esta é antes uma competência da câmara municipal nos termos do art.64º/5/a) da LAL. Assim, o despacho do presidente sofre de um vício de competência que, como não ofende o princípio de separação de poderes, não é usurpação de poderes (art.133º/2/a) CPA). Sendo assim, a gravidade do vício não justifica que lhe corresponda sanção da nulidade. Antes parece mais consentâneo com a lógica do sistema que este acto seja anulável.
Concordamos com a fundamentação de António na alínea a).

Questões formais
O art.122º do CPA dispõe sobre a forma que os actos administrativos devem revestir, falando-se na exigência da forma escrita. Não estamos dentro do âmbito dessa questão.
Quanto à forma em concreto não dispõe o CPA. Sabemos, no entanto, que o despacho é a forma menos solene para as actuações administrativas. A resolução consagra uma decisão de um ministro, uma portaria de vários ministros e um decreto (forma mais solene), é uma decisão administrativa que exige a promulgação do Presidente da República. Não conseguimos ver qual o vício de forma de que enferma o acto, segundo a alegação de António (alínea d)). A forma de despacho parece-nos perfeitamente adequada à decisão em questão e, a menos que exista um diploma legal que determine uma forma mais solene, o despacho é perfeitamente admissível. 

Questões procedimentais
Provavelmente seria necessário proceder-se a diligências prévias, tal como previsto nos arts.94º e seguintes do CPA, dada a matéria em questão. No entanto, tal como António invoca, houve claramente um vício procedimental ao não ter existido audiência prévia dos interessados (arts.100º e seguintes do CPA), que é, aliás, um direito fundamental consagrado na CRP (art.267º/1). Não nos parece que aqui se aplique o disposto no art.103º que consagra situações em que é possível dispensar esta fase. Uma vez que está aqui em causa a violação do conteúdo essencial do direito fundamental de participação dos cidadãos, consideramos que o acto é nulo, nos termos do art.133º/2/d) CPA.
Parece-nos procedente o disposto na alínea b) da fundamentação de António.
Quando António invoca que já existia um “deferimento tácito” temos de ter em atenção o disposto no art.108º do CPA. O art.108º/1 prevê que se as decisões que envolvam autorização para exercício de um direito por um particular, por um órgão administrativo não forem proferidas dentro do prazo estabelecido na lei (prazo supletivo, ver nº2, é de 90 dias) consideram-se tomadas. De facto, passaram 180 dias (6 meses) desde o requerimento de A até ao despacho do presidente (ultrapassou-se prazo supletivo de 90 dias). Ora, no nº3 deste artigo, estabelecem-se os actos que cabem na previsão do nº1. Apesar de se prever o licenciamento de obras particulares, não se prevê o licenciamento de instalação de fábricas de produtos tóxicos. Dada a maior gravidade da questão (tal instalação pode pôr em risco a saúde e segurança dos munícipes), considera-se que a norma não é extensível à situação em apreço. Sendo assim, o deferimento tácito para esta licença teria de estar previsto em lei especial. Não estando previsto, considera-se que não houve diferimento tácito porque a situação em causa não cabe na previsão do art.108º.
Considera-se este argumento de António (alínea e)) improcedente.
Quanto à questão de erro manifesto. Apesar de esta ser uma questão material tratada seguidamente, indicia-nos a existência de um problema procedimental. De facto, o despacho do presidente está sujeito a um dever de fundamentação previsto no art.124º do CPA, cabendo na sua alínea a) e também na c). Neste caso, apesar de haver fundamentação, o despacho está redigido em termos completamente incompreensíveis e contraditórios, o que leva a concluir que tal situação é, nos termos do art.125º/2, equivalente à de não ter havido qualquer fundamentação. Está assim violado o dever de fundamentação, consequentemente, o despacho enferma de outro vício procedimental. Este vício leva-nos a qualificar o despacho como nulo porque ofende um princípio fundamental da Administração Pública que é o da colaboração da Administração com os particulares (art.7º do CPA) e viola um direito fundamental dos particulares à justificação dos actos que impedem o exercício normal dos seus direitos (neste caso está em causa o impedimento ao exercício do direito à iniciativa privada – art.61º/1 da CRP). Poder-se-á ainda invocar a violação do princípio da transparência. Assim sendo, este vício caberia, por exemplo na alínea d) do art.133º/2 do CPA. Mas, mesmo que não se considere essa norma aplicável, a importância dos valores em causa poderia, ainda assim, justificar a cominação da nulidade para o despacho.

Questões materiais
Quanto a este tema, António levanta 4 questões: existência de “erro manifesto”; “desvio de poder”; violação do princípio da imparcialidade e violação do princípio da igualdade.
Também aqui nos parece existir um “erro manifesto” uma vez que no despacho se diz que o pedido é indeferido porque, não criando a instalação da fábrica postos de trabalho, não é favorável ao desenvolvimento do município. Ora, não temos acesso aos dados específicos do caso, mas parece muito duvidoso que a instalação de uma fábrica não crie postos de trabalho.
Havendo este erro, o despacho sofre de um vício material, considerando-se que é anulável, não se afigurando que este vício seja suficientemente grave para justificar a nulidade. De facto, a existência de erro não impede que a decisão seja correcta devido a outras circunstâncias, logo, poderá, ainda assim, ser justo mantê-la em vigor na ordem jurídica.
O vício tradicional “desvio do poder” era típico dos poderes discricionários e consiste num desrespeito pelo fim legal, ou seja, equivale à substituição de um determinado fim de interesse público por outro interesse público ou mesmo por um interesse privado (corrupção). Ora, o fim da norma que determina a competência da câmara para atribuir licenças de instalação de fábricas de produtos perigosos visa garantir uma ponderação de interesses que poderão conflituar com esse direito do particular à iniciativa privada, como o direito à vida (art.24º CRP), à integridade física (art.25º CRP), ao ambiente saudável (art.66º CRP), a um lugar para viver equilibrado, com condições de sustentabilidade. Ou seja, é perfeitamente cabível nas competências da câmara municipal o juízo do valor (ou desvalor) que a instalação de uma fábrica traga para o município. Assim, não nos parece que a decisão em questão constitua um vício de “desvio de poder”. O fim aparentemente prosseguido com o despacho coaduna-se com o fim legal da norma.
Não temos dados na hipótese que permitam verificar a existência de uma violação ao princípio da imparcialidade (que é uma decorrência do princípio da igualdade), nem mesmo que haja uma violação autónoma do princípio da igualdade.

A questão suscitada por António no sentido de o despacho consistir violação à lei:
O princípio da legalidade, no sentido amplo em que deve ser entendido, refere-se às violações da ordem jurídica no seu todo, incluindo, portanto, os vícios de competência, de forma, de procedimento e de natureza material, anteriormente referidos.

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