segunda-feira, 22 de abril de 2013

A concepção ampla do acto administrativo e a concepção restritiva da "peça de museu"


    No plano interno, tradicionalmente, adoptava-se uma concepção ampla de acto administrativo, dentro da qual se distinguia os actos que traduziam os dois poderes exorbitantes da Administração Pública: o poder de definição do direito e de execução coactiva. Esta ideia de acto administrativo está muito ligada com os ideiais do Estado Liberal (estado polícia), e traduz o sentido restrito, na concepção de Marcello Caetano, entendido como a “conduta voluntária de um órgão da Administração no exercício de um poder público que para a prossecução de interesses a seu cargo, pondo termo a um processo administrativo gracioso ou dando resolução final a uma petição, defina com força obrigatória e coerciva, situações jurídicas num caso concreto”. Este autor contrapunha este acto em sentido restrito ao acto administrativo em sentido amplíssimo, definindo-o como sendo uma “conduta voluntária de um órgão da Administração que, no exercício de um poder público e para a prossecução dos interesses postos por lei a seu cargo, produza efeitos jurídicos num caso concreto”.
    O professor Freitas do Amaral definia também primeiramente o acto administrativo de uma forma ampla, para depois partir para uma noção de acto definitivo e executório, referindo-se-lhe como “aquele em que se consubstancia na sua plenitude o exercício do poder público da Administração enquanto autoridade". É de notar que este professor começou, de facto, por defender, tal como o professor Marcello Caetano, uma noção  ampla, mas este não é, actualmente, o seu entendimento. Este professor invoca alguns argumentos para defender agora uma noção restritiva, argumentos esses meramente literais que, conforme sugere o professor Vasco Pereira da Silva, não são suficientes.
    O professor Rogério Soares defende uma definição restritiva de acto administrativo, delineada em razão da recorribilidade. O próprio professor Rogério Soares parece aperceber-se do carácter excessivamente restritivo da sua noção de acto administrativo.
    O professor Sérvulo Correia adopta também uma noção restrita, definindo acto administrativo como a “conduta unilateral da Administração, revestida da publicidade legalmente exigida que, no exercício de um poder de autoridade, define inocatoriamente uma situação jurídico-administrativa concreta, quer entre a Administração e outra entidade, quer de uma coisa”.
    O professor Vasco Pereira da Silva, por sua vez, entende que a noção contida no artigo 120º CPA funciona perfeitamente para efeitos de procedimento,elucidando que, naturalmente, a escrever-se uma noção teórica ter-se-íam de acrescentar alguns aspectos, desde logo introduzir a ideia de “função administrativa”, clarificar que o acto administrativo é sempre o resultado de um procedimento administrativo inserindo-se numa relação jurídica administrativa, entre outras coisas.
    Este autor, no seu Em Busca do Acto Administrativo Perdido realça o facto de, na actualidade, os actos administrativos não se poderem mais caracterizar nem pelo efeito regulador, nem pela produção individualizada de efeitos relativamente a um concreto particular, nem sequer pela ideia de execução coactiva ou de autotutela.

    Para compreender toda esta querela importa recuar ao tempo em que o acto administrativo era a forma principal da actuação administrativo, sendo tudo o resto relativamente secundário. Estas concepções actocêntricas correspondiam a um tipo de acto especial, o acto polícia, sendo por isso as concepções tradicionais do acto administrativo concepções autoritárias.
    Otto Mayer, por exemplo, positivista científico, equiparava o acto administrativo à sentença, uma vez que equiparava também a Administração Pública aos tribunais (o que corresponde, claro está, ao período de promiscuidade e confusão entre função administrativa e judicial). O acto administrativo era definidor do direito, uma definição autoritária, e por outro lado, susceptível de execução coactiva.
    Maurice Hauriou, por seu turno, positivista sociológico, admitia uma ideia de Administração de serviço público, que podia já ter uma dimensão prestadora. A sua noção de acto administrativo era, ainda assim, similar à de Otto Mayer, afirmando também os dois poderes exorbitantes da Administração Pública: poder de definir o direito e executá-lo coactivamente.
    Toda esta temática que contrapõe uma concepção restrita a uma concepção ampla de acto administrativo surge quando a realidade administrativa começa a evoluir e a Administração Pública passa a prestar também bens e serviços aos cidadãos, que deixam de ser meros súbditos para passarem a ser verdadeiros sujeitos de Direito. É por isto que as concepções de Otto Mayer e Hauriou vão ficar rapidamente desactualizadas, sobrevivendo, contudo, muito para além da sua época. Por exemplo, em Portugal, só em meados dos anos 80 é que aquela realidade tradicional começa a ser posta em causa por alguns autores, sendo que só em 2004 é definitivamente afastada esta lógica, com o desaparecimento da exigência do acto definitivo que se mantinha por força do artigo 25º da Lei do Processo dos Tribunais Administrativos.
    Bachof fala na passagem da Adminsitração agressiva para a Administração prestadora, sendo que é aqui que se começa a falar na primeira crise do acto administrativo, que deixa de ser a forma de actuação administrativa para passar a ser uma das várias formas de actuação. Para além disto, a própria noção tradicional de acto administrativo entra em crise. A Administração passa a realizar novas tarefas e o acto abandona as suas características iniciais. Surgem actos que atribuem direitos e vantagens ao particular, passando a principal função estadual a ser a administrativa, em vez da legislativa, predominante no Estado Liberal.
    Ao lado daqueles actos definitivos e executórios surge uma série de actos favoráveis que já não se reconduzem àquele modelo. Mais tarde, com a crise do Estado Social, também o acto administrativo se vai modificar. Os novos direitos fundamentais transformam as relações jurídicas em relações multilaterais, a ideia de definição do direito é afastada e surge o acto com eficácia múltipla, teorizada primariamente por Laubinger.
    Assim, conforme afirma o professor Vasco Pereira da Silva: “a actual crise do acto administrativo é, pois, sobretudo, a crise das construções dogmáticas de tipo restritivo, seja do acto regulador do direito alemão, da decisão executória do direito francês, do “provvedimento” do direito italiano, ou do acto definitivo e executório do direito português”.
    Deste modo, a solução mais correcta será a de definir acto administrativo numa acepção ampla, onde cabem não só as actuações da Administração agressiva, mas também as da Administração prestadora, os actos praticados no decurso do procedimento, e muitas outras. Importa "abandonar as concepções substantivas restritivas, sob pena de se transformar tal conceito numa «peça de museu», totalmente inadequada para responder às necessidades da Administração moderna".
  Dever-se-à, então, definir, seguindo as palavras do professor Vasco Pereira da Silva, “acto administrativo como qualquer manifestação unilateral de vontade, de conhecimento ou de desejo, proveniente da Administração Pública e destinada à satisfação de necessidades colectivas que, praticada no decurso de um procedimento, se destina à produção de efeitos jurídicos de carácter individual e concreto”. 
    Bem analisado o panorama nacional, parece que o nosso ordenamento jurídico consagra, também, uma noção ampla de acto administrativo, conforme retiramos dos artigos 120º CPA e 268º/4 CRP, sendo esta a mais adequada à conjuntura actual e ao modelo prestador da administração.

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