sábado, 20 de abril de 2013

Restrito Acto Administrativo e a sua Ampla Concepção



O acto administrativo foi, durante muitos anos, o centro do Direito Administrativo, sendo que o seu conceito delimitava certos comportamentos da Administração em função da fiscalização da actividade administrativa pelos tribunais. Isto visto, sabe-se que existiu, existe e provavelmente existirá, uma complexa querela doutrinal acerca da sua noção, e se deverá ser entendida através de uma concepção ampla ou mais restrita. Para analisar tal questão torna-se necessário percorrer a história do acto administrativo, de modo a compreender toda a sua evolução.

Nos primórdios da Revolução Francesa, a noção de acto administrativo surge para delimitar as acções da Administração Pública excluídas por lei da fiscalização dos tribunais judiciais. Ou seja, pretendia-se identificar quais as actuações da Administração Pública sobre os quais os tribunais não se podiam pronunciar. Ao interpretar a separação de poderes como absoluta abstenção dos tribunais intervirem na actividade administrativa, subtrai-se os actos administrativos à jurisdição dos tribunais judiciais. Consistia então numa garantia da Administração.
O acto administrativo era então protagonista da actuação administrativa e do contencioso administrativo. Estas concepções, em que o acto administrativo se encontrava no centro do Direito Administrativo, denominadas pelo Prof. Vasco Pereira da Silva como “actocênticas" procuravam um conceito amplo que explicasse toda a realidade. O seu acto era o de uma Administração agressiva, consistindo num acto de polícia.
Otto Mayer equiparava a Administração Pública aos Tribunais. Tal levou à aproximação do acto administrativo e da sentença, por ambos corresponderem a actos de definição de direito. Mais, considerava ainda que o particular é um administrado e por isso, à semelhança da sentença, o acto administrativo era de dimensão autoritária e susceptível de execução coactiva contra a vontade dos particulares.
Maurice Hauriou apresenta uma construção mais aberta pois, no quadro de um positivismo sociológico, permitiu a ideia de uma administração de serviço público, que podia ter dimensão prestadora. Maurice Hauriou, ao contrário de Otto Mayer, não partia da assimilação do acto administrativo às sentenças, utilizando por contrapartida o método da contraposição. Assim, contraponha o acto jurídico negócio jurídico. Tal levava ao realce dos poderes exorbitantes da Administração que consistiam no poder de definição de Direito, e no poder de execução coactiva.
Em Portugal uma construção perto das referidas anteriormente seria a do Prof. Marcello Caetano. Este parte de uma noção amplíssima de actos jurídicos da Administração, dentro da qual cabem os regulamentos, actos jurisdicionais e acto administrativos, que se qualificavam em razão da sua proveniência. Esta amplitude espelhava bem a promiscuidade existente entre a Administração e Justiça, num sistema que considerava os tribunais administrativos como órgãos da Administração activa. Daqui advém a noção ampla de acto administrativo como conduta voluntária de um órgão da Administração que, no exercício de um poder público e para a prossecução dos interesses postos por lei a seu cargo, produza efeitos jurídicos num caso concreto. Deste acto amplo se distinguiria depois um outro conceito mais restrito correspondente aos actos que têm por conteúdo a fixação autoritária de posições relativas. Será este acto em sentido restrito, que se denomina de acto definitivo e executório, que pode ser definido, segundo Marcello Caetano, como “a conduta voluntária de um órgão da Administração no exercício de um poder público que para a prossecução de interesses a seu cargo, ponto termo a um processo administrativo gracioso ou dando resolução final a uma petição, defina, com força obrigatória e coerciva, situações jurídicas num caso concreto”. Tal construção foi aceite e durará até à revisão Constitucional de 1989, em que tal noção desaparecerá. Contudo, considerando todo o sistema legislativo, a noção de acto definitivo e executório surgirá até à reforma do contencioso administrativo em 2004, em que foi revogado o ART.25 da Lei do Processo dos Tribunais Administrativos, substituída em 2004 pelo Código de Processo dos Tribunais Administrativos.

Numa segunda fase a noção de acto administrativo irá servir para definir as actuações da Administração Pública submetidas ao controlo dos tribunais administrativos. Assim, passou a ser um conceito ao serviço do sistema de garantias dos particulares. Esta fase é ainda visível hoje, ao delimitar-se comportamentos susceptíveis de fiscalização contenciosa através da acção administrativa especial de impugnação de actos administrativos.
No próprio ART.268/4 da Constituição da República Portuguesa – de ora em diante CRP -, acto administrativo aparece a delimitar os comportamentos da Administração susceptíveis de controlo jurisdicional.
A par desta função contenciosa, o acto administrativo cumpre uma função substantiva e uma função procedimental. Quer isto dizer que através do acto administrativo os órgãos da Administração Pública concretizam os preceitos jurídicos gerais e abstractos constantes em fontes do Direito Administrativo, conformando situações da vida em função do que se dispõe em tal preceitos. A aplicação de uma norma jurídica geral e abstracta consistirá na função substantiva do acto administrativo. Por outro lado, quando a Administração tome uma decisão que cumpra as características às da noção de acto administrativo do ART.120 do Código do Procedimento Administrativo – de ora em diante CPA -, estará a fazer uso da sua função procedimental, pois trata-se de uma forma de actuação que é praticada no decurso de um procedimento no qual os particulares são chamados a participar.
Quer isto demonstrar que, hoje em dia, a noção de acto administrativo tem de ser relativizada, pois não se pode dizer que corresponda à ordem central que uma vez fora.
De 1980 em diante, a geração dos administrativistas pôs em causa os conceitos tradicionais e a lógica tradicional de entender o Direito Administrativo. Desde logo, nos países europeus começam a surgir transformações de uma Administração Agressiva para uma Administração Prestadora, o que tem como consequências que se aumenta a importância da Administração e se põe em causa as suas formas de actuação. A Administração do Estado Social terá à sua escolha várias alternativas de forma de actuação. Tal levará a que o acto deixe de ser o centro de todas as coisas, e deixe de ser “a” forma de actuação administrativa e passa a ser “uma” das várias formas de actuação administrativa.
É neste momento que o acto perde a sua função de protagonista exclusivo e é obrigado a compartilhar o palco com outras formas de actuação. Mais, as características apontadas ao acto de definitividade e executoriedade já não fazem sentido, pois os actos atribuem vantagens, direitos, aos particulares, atribuem direitos. Por terem tal característica, isto é, por serem favoráveis, não são susceptíveis de execução coactiva. Assim, a questão já não será a da execução contra a vontade dos particulares mas o da sua execução contra a própria Administração. Ainda é de referir que o direito não é mais o fim do acto, mas antes o meio.
Finalmente, o acto administrativo tem hoje a característica de poder ter eficácia múltipla. Mesmo os actos com número reduzido de sujeitos afectam os vizinhos e têm dimensão multilateral.
Por tudo o que foi exposto, chega-se à conclusão de que é premente encontrar uma noção de acto administrativo que abranja os actos da administração agressiva, prestadora, e infra-estrutural, pois a Administração tem de ser suficientemente ampla para abranger todas estas realidades.

Há quem entenda que são actos administrativos apenas os actos jurídicos, e quem entenda que o podem ser também as operações materiais ou os meros factos involuntários ou naturais. Há quem pense que são apenas os actos organicamente administrativos, ou seja, praticados por órgãos da Administração, ou materialmente administrativos, ou seja, sobre matéria administrativa. Há ainda quem defenda ser possível construir uma sua noção material, ou que só é acto administrativo o que versa sobre uma situação individua num caso concreto.
Para o Prof. Freitas do Amaral, os elementos do conceito de acto administrativo são que este consista num acto jurídico, isto é, numa conduta voluntária produtora de efeitos jurídicos, que seja um acto unilateral, ou seja, que provenha de um só autor, cuja declaração é perfeita independentemente do concurso de vontades de outros órgãos ou sujeitos de direito, que seja praticado no exercício do poder administrativo, ao abrigo de normas de direito público, para o desempenho de uma actividade administrativa de gestão pública, que seja praticado por um órgão administrativo, que seja um acto decisório, ou seja, que consista numa conduta administrativa susceptível de afectar, por si só, imediata ou potencialmente, a esfera jurídica dos particulares e, finalmente, que consista num acto que verse sobre uma situação individual e concreta.
Assim, segundo esta concepção, será acto administrativo o acto jurídico unilateral praticado, no exercício do poder administrativo, por um órgão da Administração ou por outra entidade pública ou privada para tal habilitada por lei, e que traduz a decisão de um caso considerado pela Administração, visando produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta. É de entender que está aqui em causa uma noção do tipo autoritário de acto definitivo e executório, que conjuga a ideia de definição do direito com a noção de executoriedade.
Este autor considera ainda que o acto administrativo é uma figura central, fundamental, do Direito Administrativo. Aliás, cita Sérvulo Correia que referiu que “apesar de assistirmos nos dias de hoje a uma diversidade dos modos de conduta administrativa, com perda de peso relativo do acto administrativo, ninguém minimamente conhecedor das realidades ousará negar que este é ainda, de longe, em Portugal como nos outros “sistemas de Direito Administrativo”, a forma mais utilizada no exercício jurídico da função administrativa”.

Por outro lado, o Prof. Vasco Pereira da Silva contesta o entendimento tradicional do acto administrativo como figura central e paradigmática. Isto porque o acto administrativo como acto de autoridade é uma noção marcadamente autoritária, já inadequada ao Estado social e democrático de Direito. Mais, já não é hoje, ou não deve ser, a figura central do Direito Administrativo, sendo melhor substituí-lo pelo conceito de relação jurídica administrativa. Quererá isto dizer que a acção administrativa especial de impugnação não poderá ser hoje a única ou principal garantia jurisdicional dos particulares, sendo de considerar as diferentes acções existentes no contencioso administrativo, bem como processos urgentes, providências cautelares, entre outros. Como contrapartida, o Prof. Freitas do Amaral defende que a figura do acto administrativo, como acto unilateral de autoridade da Administração, é independente dos regimes políticos dos vários países, sendo que apenas o seu regime jurídico e garantias dos particulares face aos actos ilegais é que variam conforme o Estado seja mais ou menos liberal ou democrático. Aliás, afirma que onde haja Estado, haverá poder, que se exprime como autoridade por meio de normas e actos concretos.
Para o Prof. Vasco Pereira da Silva, o acto deve ser definido de forma mais ampla, correspondendo à diversidade e complexidade das actuações administrativas nos dias de hoje. Assim, deve compreender a actividade agressiva da Administração e as decisões de natureza prestadora e conformadora.
Visto isto, os actos não se devem caracterizar pelo efeito regulador, pois muitos possuem um conteúdo mais material do que jurídico, nem pela produção individualizada de efeitos relativamente a um concreto particular, pois os seus efeitos atingem igualmente outros particulares, sujeitos de relações jurídicas multilaterais.

Observando outros autores, segundo Rogério Soares o acto administrativo deve definir-se de uma forma restritiva. Este conclui que o acto administrativo assume o sentido de acto da Administração que está sujeito a impugnação contenciosa e, por isso, define-se como estatuição autoritária, relativa a um caso individual, manifestada por um agente da Administração no uso de poderes de Direito Administrativo, pela qual se produzem efeitos jurídicos externos, positivos ou negativos.
Esta é uma noção restritiva que exclui todas as actuações administrativas que não possuam a natureza de uma estatuição autoritária, como sejam a prestação de um bem ou de um serviço. Mais, ao defender que o conceito de acto administrativo é delimitado em função do objecto do contencioso, e depois afirmar que certos actos não são recorríveis devido à repartição de competências em matéria de organização administrativa, parece contraditório. É ainda de referir que as concepções restritivas não têm em conta os fenómenos do procedimento, que se tornou um instrumento indispensável da actividade administrativa quer do ponto de vista da protecção dos interesses individuais como da obtenção da legalidade e correcção das decisões.

Sérvulo Correia, já referido, tem também uma visão restrita, pois entende o acto administrativo como a “conduta unilateral da Administração, revestida da publicidade legalmente exigida, que, no exercício de um poder de autoridade, define inovatoriamente uma situação jurídico – administrativa concreta, quer entre a Administração e outra entidade, quer de uma coisa”. Quer isto dizer que “da conduta da Administração tem de resultar a constituição, modificação ou extinção de relações intersubjectivas ou a alteração da situação jurídico-administrativa de uma coisa”. Vem ainda acrescentar que o conteúdo do acto pode também ser meramente declarativo ou enunciativo, como quando se procede à verificação de certas qualidades nas pessoas.

Uma vez analisadas diversas posições, é necessário observar o que se encontra disposto na lei. O ART.120 do CPA, corresponde a um âmbito de aplicação da noção de acto administrativo que é suficientemente ampla para abranger todas estas manifestações da Administração. Diz-se que, para os efeitos da presente lei, se consideram actos administrativos as decisões dos órgãos da Administração Pública que ao abrigo de normas de direito público visem produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta.
Para o Prof. Freitas do Amaral este ART.120 refere-se a decisões, que constituem algo típico da função jurisdicional, que regula e cria o direito. Isto visto, se o legislador compara o acto administrativo com uma decisão, então, segundo a interpretação deste Professor, está a comparar ao acto a uma sentença, e será por isso executório. Contudo, este argumento não terá seguimento, pois quando se refere decisões nem sempre se está a comparar com uma sentença, pois existem decisões políticas e mesmo decisões dos indivíduos. Outro argumento apontado por este Professor é a referência às normas de direito público. No entanto este é um mero argumento literal, que não será suficiente para se extrair uma noção de acto regulador. Isto visto, é de referir que a noção do CPA não está completa, pois não constituem apenas actos administrativos as decisões dos órgãos da administração, mas também os próprios privados quando seguem atribuições públicas. Servirão de exemplo as actuações dos bombeiros e das associações desportivas.
Mais, por o acto administrativo ser uma actuação que cria, modifica ou extingue relações jurídicas administrativas, esta ideia (de relação jurídica) também deveria integrar o conceito de acto administrativo. Não obstante, o Prof. Freitas do Amaral entende que uma coisa será reconhecer a inegável importância da relação jurídico-administrativa na construção dogmática, e outra será extrair dessa a posição a conveniência de estruturar o plano didáctico da exposição do Direito Administrativo segundo o critério da relação jurídica, não concordando por isso com esta posição.
Relativamente à exigência da individualidade e da concretização, esta é relevante no sentido em que nos permite distinguir o acto administrativo do regulamento, permitindo ainda englobar as realidades intermédias, que consistirão em situações em que há uma actuação individual mas abstracta, pois aplicam-se a determinado indivíduo, mas dizem respeito a várias situações da vida que se sucedem, ou as situações gerais mais concretas, que se aplicam a todos os indivíduos, mas diz respeito a uma determinada situação. Estas situações referidas deverão ser pois entendidas como regulamento, pois apenas para o acto é exigível a individualidade e concretização.

Como conclusão final, creio que poderá definir-se acto administrativo como qualquer manifestação unilateral de vontade, de conhecimento ou de desejo, proveniente da Administração Pública e destinada à satisfação de necessidades colectivas que, praticada no decurso de um procedimento, se destina à produção de efeitos jurídicos de carácter individual e concreto.

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