segunda-feira, 1 de abril de 2013


RESERVA DE LEI

Esta dimensão é o lado positivo do princípio da legalidade. No fundo a lei (o ordenamento jurídico) é sempre fundamento, critério e limite das actuações administrativas[1].
       

        1. Precedência de lei (fundamento)

O fundamento jurídico-normativo da actuação administrativa deve ser anterior à actuação administrativa, sendo esta a vertente formal do princípio da reserva da lei.

A actuação administrativa tem de ter sempre fundamento na lei (numa norma jurídica). A CRP define reservas relativamente a determinadas matérias no art.18º/2[2] e nos arts.161º, 164º e 165º (por causa do art.166º/2 e 3). Contudo, a reserva de lei não se reduz a estes âmbitos.

Actualmente, “a reserva de lei exprime (…) uma preferência pela decisão normativa dotada de legitimidade democrática representativa directa ou imediata”. No fundo, parte-se da constatação de que a legitimidade democrática não é sempre idêntica nem tem sempre idêntica intensidade, sendo esta intensidade máxima nos actos legislativos emanados da Assembleia da República[3].

A reserva de lei abrange que tipo de actuações administrativas? Apenas as de natureza agressiva, ou também as de natureza prestacional e as de natureza executória?

Tese A – só existe reserva de lei relativamente à administração agressiva (Sérvulo Correia, Paulo Otero, Afonso Queiró, Vieira de Andrade)
Fundamento democrático – disseminação da legitimidade democrática por todas as esferas do poder público dissolveu fundamento democrático da reserva de lei;
Fundamento garantístico – não se aplica quando esteja em causa a atribuição de uma vantagem aos particulares e não uma compressão da sua esfera individual (“a cavalo dado não se olha o dente” – Rogério Soares).

Sérvulo Correia defende que não faz sentido distinguir legitimidade democrática dentro do mesmo órgão, Governo, que é simultaneamente órgão legislativo e órgão administrativo. Em qualquer destas competências o Governo pode aliás aprovar actos normativos (decretos-leis ou decretos regulamentares). Mas esta distinção faz sentido na medida em que, na prática, para serem aprovados actos legislativos a CRP exige colegialidade (arts.168º e 200º/1/d) CRP); ao passo, que, para os actos administrativos, ainda que normativos (decretos regulamentares) não se apresenta tal requisito. Logo, nos primeiros há uma garantia de racionalidade e de ponderação que não está assegurada quanto aos segundos.

Afirma ainda Sérvulo Correia que o art.199º/g) confere uma competência genérica do Governo para praticar actos prestacionais. Sendo assim, ao órgão superior da Administração Pública bastaria, para a prática de tais actos, uma reserva de norma constitucional que tem maior legitimidade democrática do que os actos legislativos ordinários. No entanto, parece-nos duvidoso este último ponto uma vez que a CRP apesar de ser, em tese, o documento normativo que melhor corresponde à identidade nacional e à consciência jurídica do povo português, na prática é indiscutível que a CRP não consegue aderir às evoluções do tempo tão bem como as leis ordinárias e que, no fundo, acaba por ser em grande parte fruto de uma conjectura política específica e parada no tempo. Mas isso levar-nos-ia a outra discussão que seria a de saber se há verdadeira legitimidade democrática nas normas constitucionais… Porém, pode ainda dizer-se que as normas constitucionais não são, por natureza, densas o suficiente para servirem de habilitação directa a uma actuação administrativa, tal como é exigido pela 2ª dimensão da reserva de lei que é a da densificação normativa. Assim, o art.199º/g) deverá ser considerado como norma de atribuições e não de competências[4].

Tese B – teoria da essencialidade (Wesentlichkeitstheorie) (Rogério Soares, Maria João Estorninho, Cabral de Moncada)
Esta tese procura adaptar o conceito de reserva de lei liberal aos tempos modernos, de Estado Social. Na época liberal o que era considerado essencial era a defesa da liberdade individual e da propriedade. A estes dois vectores se resumiam os chamados direitos fundamentais. Com o evoluir dos tempos este catálogo foi sendo sucessivamente alargado: nasceram mais direitos também eles fundamentais, essenciais. E é por o direito ser essencial que deve estar sujeito a uma reserva de lei, sendo de admitir actuações administrativas sem base legal em matérias consideradas não essenciais.

Esta tese tem o defeito de criar uma certa insegurança jurídica devido à fluidez e talvez relatividade do conceito “essencialidade”.

Tese C – existe reserva de lei sempre (posição maioritária na doutrina portuguesa: Freitas do Amaral, Jorge Miranda, Gomes Canotilho, Maria da Glória Garcia, Manuel Afonso Vaz, Blanco de Morais, Maria Lúcia Amaral)
Na linha do pensamento do Professor Vasco Pereira da Silva, pode-se dizer que, quando a Administração presta um serviço a alguém, não está apenas a beneficiar um indivíduo ou um conjunto de indivíduos, mas a beneficiá-los em detrimento de outros, o que porá sempre em jogo, por exemplo, o princípio da igualdade. Uma actuação prestadora implica sempre necessariamente uma selecção, uma definição de prioridades, o uso de meios monetários que são sempre escassos (e mais escassos ainda nos tempos que correm).

Também os actos de execução só podem existir se houver uma lei que os preveja e se não cumprirem os requisitos serão ilegais. A actividade executiva, como diz o Professor Vasco Pereira da Silva, não é um “prinilégio da Administração”.

Assim, defende esta tese que “nenhum acto da administração, em qualquer esfera da sua actividade, poderia deixar de se fundamentar na lei.”, sendo esta uma exigência do princípio democrático[5]. A reserva de lei coincide sempre com uma reserva de lei ordinária, excepto quanto àquelas normas que, por força da CRO, têm aplicabilidade directa (caso das normas sobre direitos liberdades e garantias e direitos de natureza análoga – arts.17º e 18º CRP; e das normas organizativas).

Como argumento da CRP, refere-se o art.112º/7 – se qualquer regulamento deve ter indicação expressa do seu fundamento legal (que, por isso, deve existir), então, por maioria de razão, também o mesmo se aplica a qualquer acto não normativo.

A doutrina moderna sustenta que este princípio se estende não só à actividade prestacional da Administração, mas também,  aos “aspectos do funcionamento interno da administração” (relações de hierarquia – poderes disciplinar e de supervisão); às “funções de infra-estruturação” (planos); à matéria de organização administrativa – “criação de pessoas colectivas públicas, serviços públicos e órgãos administrativos” (reserva de lei institucional no dizer da doutrina alemã); ao procedimento administrativo (actividade decisória e executiva) – art.267º/5 CRP; à actuação administrativa em caso de estado de necessidade – que é, não uma excepção ao princípio da legalidade mas uma “legalidade excepcional”


Outra dúvida que se levanta é a seguinte: Se houver uma actuação administrativa não contrária à lei mas que não tenha fundamento numa norma jurídica e se, mais tarde, surgir uma lei que substantivamente justifique essa actuação, a actuação administrativa é sanada?



2.  Reserva de densificação normativa (critério e limite)

O fundamento jurídico-normativo deve possuir um grau de pormenorização suficiente para permitir antecipar adequadamente a actuação administrativa em causa. Esta é a vertente material do princípio da reserva de lei. Sem esta dimensão o princípio da reserva de lei perderia o seu fundamento democrático (a Administração acabaria por ter liberdade para fazer o que lhe aprouvesse, sendo a lei genérica) e o seu fundamento garantístico (tendo a Administração tamanha liberdade não haveria segurança dos particulares, que não estariam aptos a prever as actuações administrativas futuros.

Por densidade entende-se “um determinado grau de especificação e pormenorização, quer dos pressupostos, quer dos meios” de certa actuação. A formulação da norma deve permitir “antecipar os aspectos fundamentais da actuação administrativa habilitada”.[6]

Os Professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos apontam os seguintes factores que influenciam o grau de densidade exigido[7]:
a)  Incidência da actuação administrativa habilitada na esfera social (quando há afectação de direitos, liberdades e garantias o grau deve ser maior p.ex.);
b) Previsibilidade da actuação administrativa independentemente da previsão legal (quanto maior a imprevisibilidade, maior deve ser a densificação);
c) Grau de legitimidade democrática da administração normativamente habilitada (será exigida menor densificação se a administração habilitada estiver “especialmente legitimada do ponto de vista democrático-representativo” – algumas matérias da competência d administração autónoma)
Este princípio prende-se com a questão da “abertura das normas”, ou seja, com o tema da vinculação e da discricionariedade da Administração. Esta questão é mais delicada e tratarei numa terceira e última parte.


[1] AMARAL, Diogo Freitas do [et al] – Código do Procedimento Administrativo Anotado, p.40
[2] O art.18º/2 é uma continuação do legado liberal de reserva de lei, tendo-se em conta um sentido restrito de lei e não o sentido de bloco de legalidade. Contudo, não esquecer que houve evolução no catálogo dos chamados direitos fundamentais.
[3] SOUSA; Marcelo Rebelo de e MATOS, André Salgado de - Op. cit., p.168.
[4] Ibid p.173
[5] Ibid p.172 e p.174.
[6] Ibid pp.176 e 177.
[7] Ibid p.177.

Sem comentários:

Enviar um comentário