RESERVA DE LEI
Esta
dimensão é o lado positivo do princípio da legalidade. No fundo a lei (o
ordenamento jurídico) é sempre fundamento, critério e limite das actuações
administrativas[1].
1. Precedência de lei (fundamento)
O
fundamento jurídico-normativo da actuação administrativa deve ser anterior à
actuação administrativa, sendo esta a vertente formal do princípio da reserva
da lei.
A
actuação administrativa tem de ter sempre fundamento na lei (numa norma
jurídica). A CRP define reservas relativamente a determinadas matérias no art.18º/2[2] e
nos arts.161º, 164º e 165º (por causa do art.166º/2 e 3). Contudo, a reserva de
lei não se reduz a estes âmbitos.
Actualmente,
“a reserva de lei exprime (…) uma preferência pela decisão normativa dotada de
legitimidade democrática representativa directa ou imediata”. No fundo,
parte-se da constatação de que a legitimidade democrática não é sempre idêntica
nem tem sempre idêntica intensidade, sendo esta intensidade máxima nos actos
legislativos emanados da Assembleia da República[3].
A reserva de lei abrange que tipo
de actuações administrativas? Apenas as de natureza agressiva, ou também as de
natureza prestacional e as de natureza executória?
Tese
A – só existe reserva de lei relativamente à administração agressiva (Sérvulo Correia, Paulo Otero, Afonso Queiró,
Vieira de Andrade)
Fundamento
democrático – disseminação da legitimidade democrática por todas as esferas do
poder público dissolveu fundamento democrático da reserva de lei;
Fundamento
garantístico – não se aplica quando esteja em causa a atribuição de uma
vantagem aos particulares e não uma compressão da sua esfera individual (“a
cavalo dado não se olha o dente” – Rogério Soares).
Sérvulo
Correia defende que não faz sentido distinguir legitimidade democrática dentro do mesmo
órgão, Governo, que é simultaneamente órgão legislativo e órgão administrativo.
Em qualquer destas competências o Governo pode aliás aprovar actos normativos
(decretos-leis ou decretos regulamentares). Mas esta distinção faz sentido na
medida em que, na prática, para serem aprovados actos legislativos a CRP exige
colegialidade (arts.168º e 200º/1/d) CRP); ao passo, que, para os actos
administrativos, ainda que normativos (decretos regulamentares) não se
apresenta tal requisito. Logo, nos primeiros há uma garantia de racionalidade e
de ponderação que não está assegurada quanto aos segundos.
Afirma
ainda Sérvulo Correia que o art.199º/g) confere uma competência genérica do Governo
para praticar actos prestacionais. Sendo assim, ao órgão superior da
Administração Pública bastaria, para a prática de tais actos, uma reserva de
norma constitucional que tem maior legitimidade democrática do que os actos
legislativos ordinários. No entanto, parece-nos duvidoso este último ponto uma
vez que a CRP apesar de ser, em tese, o documento normativo que melhor
corresponde à identidade nacional e à consciência jurídica do povo português,
na prática é indiscutível que a CRP não consegue aderir às evoluções do tempo
tão bem como as leis ordinárias e que, no fundo, acaba por ser em grande parte
fruto de uma conjectura política específica e parada no tempo. Mas isso
levar-nos-ia a outra discussão que seria a de saber se há verdadeira
legitimidade democrática nas normas constitucionais… Porém, pode ainda dizer-se
que as normas constitucionais não são, por natureza, densas o suficiente para
servirem de habilitação directa a uma actuação administrativa, tal como é
exigido pela 2ª dimensão da reserva de lei que é a da densificação normativa.
Assim, o art.199º/g) deverá ser considerado como norma de atribuições e não de
competências[4].
Tese
B – teoria da essencialidade
(Wesentlichkeitstheorie) (Rogério Soares, Maria João Estorninho, Cabral de
Moncada)
Esta
tese procura adaptar o conceito de reserva de lei liberal aos tempos modernos,
de Estado Social. Na época liberal o que era considerado essencial era a defesa
da liberdade individual e da propriedade. A estes dois vectores se resumiam os
chamados direitos fundamentais. Com o evoluir dos tempos este catálogo foi
sendo sucessivamente alargado: nasceram mais direitos também eles fundamentais, essenciais. E é por o
direito ser essencial que deve estar sujeito a uma reserva de lei, sendo de
admitir actuações administrativas sem base legal em matérias consideradas não
essenciais.
Esta
tese tem o defeito de criar uma certa insegurança jurídica devido à fluidez e
talvez relatividade do conceito “essencialidade”.
Tese
C – existe reserva de lei sempre
(posição maioritária na doutrina portuguesa: Freitas do Amaral, Jorge Miranda,
Gomes Canotilho, Maria da Glória Garcia, Manuel Afonso Vaz, Blanco de Morais,
Maria Lúcia Amaral)
Na
linha do pensamento do Professor Vasco Pereira da Silva, pode-se dizer que,
quando a Administração presta um serviço a alguém, não está apenas a beneficiar
um indivíduo ou um conjunto de indivíduos, mas a beneficiá-los em detrimento de outros, o que porá
sempre em jogo, por exemplo, o princípio da igualdade. Uma actuação prestadora
implica sempre necessariamente uma selecção, uma definição de prioridades, o
uso de meios monetários que são sempre escassos (e mais escassos ainda nos
tempos que correm).
Também
os actos de execução só podem existir se houver uma lei que os preveja e se não
cumprirem os requisitos serão ilegais. A actividade executiva, como diz o
Professor Vasco Pereira da Silva, não é um “prinilégio da Administração”.
Assim, defende esta tese que “nenhum acto da
administração, em qualquer esfera da sua actividade, poderia deixar de se
fundamentar na lei.”, sendo esta uma exigência do princípio democrático[5]. A
reserva de lei coincide sempre com uma reserva de lei ordinária, excepto quanto
àquelas normas que, por força da CRO, têm aplicabilidade directa (caso das
normas sobre direitos liberdades e garantias e direitos de natureza análoga –
arts.17º e 18º CRP; e das normas organizativas).
Como
argumento da CRP, refere-se o art.112º/7 – se qualquer regulamento deve ter
indicação expressa do seu fundamento legal (que, por isso, deve existir),
então, por maioria de razão, também o mesmo se aplica a qualquer acto não
normativo.
A
doutrina moderna sustenta que este princípio se estende não só à actividade
prestacional da Administração, mas também,
aos “aspectos do funcionamento interno da administração” (relações de
hierarquia – poderes disciplinar e de supervisão); às “funções de
infra-estruturação” (planos); à matéria de organização administrativa –
“criação de pessoas colectivas públicas, serviços públicos e órgãos
administrativos” (reserva de lei institucional no dizer da doutrina alemã); ao
procedimento administrativo (actividade decisória e executiva) – art.267º/5
CRP; à actuação administrativa em caso de estado de necessidade – que é, não
uma excepção ao princípio da legalidade mas uma “legalidade excepcional”
Outra
dúvida que se levanta é a seguinte: Se
houver uma actuação administrativa não contrária à lei mas que não tenha
fundamento numa norma jurídica e se, mais tarde, surgir uma lei que substantivamente
justifique essa actuação, a actuação administrativa é sanada?
2. Reserva de densificação normativa (critério e limite)
O
fundamento jurídico-normativo deve possuir um grau de pormenorização suficiente
para permitir antecipar adequadamente a actuação administrativa em causa. Esta
é a vertente material do princípio da reserva de lei. Sem esta dimensão o
princípio da reserva de lei perderia o seu fundamento democrático (a
Administração acabaria por ter liberdade para fazer o que lhe aprouvesse, sendo
a lei genérica) e o seu fundamento garantístico (tendo a Administração tamanha
liberdade não haveria segurança dos particulares, que não estariam aptos a
prever as actuações administrativas futuros.
Por
densidade entende-se “um determinado grau de especificação e pormenorização,
quer dos pressupostos, quer dos meios” de certa actuação. A formulação da norma
deve permitir “antecipar os aspectos fundamentais da actuação administrativa
habilitada”.[6]
Os
Professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos apontam os
seguintes factores que influenciam o grau de densidade exigido[7]:
a) Incidência da actuação administrativa habilitada na
esfera social (quando há afectação de direitos, liberdades e garantias o grau
deve ser maior p.ex.);
b) Previsibilidade da actuação administrativa
independentemente da previsão legal (quanto maior a imprevisibilidade, maior
deve ser a densificação);
c) Grau de legitimidade democrática da administração
normativamente habilitada (será exigida menor densificação se a administração
habilitada estiver “especialmente legitimada do ponto de vista democrático-representativo”
– algumas matérias da competência d administração autónoma)
Este
princípio prende-se com a questão da “abertura das normas”, ou seja, com o tema
da vinculação e da discricionariedade da Administração. Esta questão é mais
delicada e tratarei numa terceira e última parte.
[1] AMARAL, Diogo Freitas
do [et al] – Código do Procedimento
Administrativo Anotado, p.40
[2]
O art.18º/2 é uma continuação do legado liberal de reserva de lei, tendo-se em
conta um sentido restrito de lei e não o sentido de bloco de legalidade.
Contudo, não esquecer que houve evolução no catálogo dos chamados direitos
fundamentais.
[3] SOUSA; Marcelo Rebelo de e MATOS, André Salgado de - Op. cit., p.168.
[4] Ibid p.173
[5] Ibid p.172 e
p.174.
[6] Ibid pp.176 e
177.
[7] Ibid p.177.
Sem comentários:
Enviar um comentário