segunda-feira, 1 de abril de 2013

"Todos diferentes, todos iguais"

    Para se ter uma compreensão exacta do lugar dos direitos subjectivos no mundo da Administração Pública, é fundamental recordar aqueles que foram os traumas da infância da Administração, desde logo o facto de o particular, numa fase precoce do Direito Administrativo, não possuir direitos perante a Administração, sendo entendido como um mero objecto do poder, um súbdito.
    A mudança de paradigma e consequente entendimento do indivíduo já não como súbdito mas enquanto cidadão constitui um marco do novo Direito Administrativo, que vem agitar a doutrina, a jurisprudência e a própria vida da Administração. Afigura-se fundamental contar a sua história em várias vozes, para se ter uma compreensão clara e neutra de como tudo aconteceu.
    Importa começar por referir que esta evolução, para os autores mais atentos, não se encontra, ainda, concluída, uma vez que apesar de já não se negar a existência de direitos dos particulares perante a Administração (artigo 268º da Constituição), parte da doutrina continua a falar em direitos de primeira, de segunda e de terceira. 
    Sem mais demora, importa ouvir as várias vozes, tirar os devidos apontamentos e perceber, afinal, em que moldes se deverá hoje conceber a posição do particular em face da Administração. 

    Conforme afirma Walter Krebs, o conceito de direito subjectivo público teve a sua origem na dogmática alemã, sendo Buehler o seu pai e Bachof o seu mentor. Nas palavras do autor, trata-se de um “conceito que Buehler desenvolveu, Bachof aperfeiçoou e a doutrina grandemente maioritária aceitou”.
    Apesar do avanço que representou a teorização de Buehler, a verdade é que autores como Fritz Fleiner e Otto Mayer continuaram a negar a qualidade de sujeito aos particulares, considerando ilógico conceber um poder particular perante o poder público. Esta corrente teve a sua força nos finais do século XIX e princípios do século XX, mas veio a revelar-se, mais tarde, incompatível com os princípios do Estado de Direito, perante o qual deixa de fazer sentido falar em súbditos.
    De teor objectivista era, também, por estranho que pareça, a orientação da chamada “escola subjectivista” francesa (Bonnard e Barthélèmy, acolhida por Marcello Caetano, entre nós), que partindo dos mesmos princípios das doutrinas negacionistas, falava num direito subjectivo genérico à legalidade. Este direito desdobrava-se num poder de exigir a “existência da legalidade”, a “ausência de ilegalidade” e, caso se tenha produzido, a “supressão da ilegalidade”. Esta construção afirmava uma ideia subjectivista, mas na realidade continuava a negar a subjectivização dos particulares perante a Administração.
    Estas duas primeiras concepções estão hoje, como parece evidente, ultrapassadas, sendo incompatíveis com o paradigma de Estado de Direito em que vivemos. E mesmo a concepção de Buehler, apesar de representar um claro avanço na dogmática do Direito Administrativo, tem de ser entendida no âmbito de uma Administração agressiva característica do Estado Liberal, em que, na verdade, existia um reduzido número de direitos subjectivos dos particulares.

    Com a mudança para um Estado Social, as tarefas da Administração multiplicam-se, sendo que ao lado do acto administrativo, forma de actuação da Administração Pública no Estado Liberal, surgem outras formas de actuar. Seguindo a metárfora utilizada pelo professor Vasco Pereira da Silva, a Administração, que actuava antes sob uma farda única, passa a ter ao seu dispor um verdadeiro pronto-a-vestir. É neste contexto que surge uma terceira concepção, que parte da distinção entre direito subjectivo (situação em que o cidadão é protegido directamente pela norma jurídica) e interesse legítimo (protecção difusa do particular), ou seja, da identificação de direitos de 1ª e direitos de 2ª dos particulares. Este entendimento tinha uma dimensão processual no âmbito do Direito Italiano, constituindo uma construção já mais aceitável vista através das lentes do Estado Social. É, ainda assim, susceptível de críticas. Desde logo, cria situações de vantagem do particular através de extracções da norma. E, para além disso, conforme realça o professor Vasco Pereira da Silva, se há uma norma que protege o particular, estamos perante um direito subjectivo, se não, não estamos. O que poderá haver é várias categorias de direitos subjectivos, não fazendo sentido falar-se nesta concepção bipartida. Ainda seguindo o pensamento deste professor, este excesso de qualificações do interesse do particular visava “deixar entrar pela janela aquilo a que se negava a entrada pela porta”. Em suma, esta construção é um contra-senso, uma vez que se há uma norma que atribui uma posição de vantagem então haverá um direito subjectivo, que poderá ter um conteúdo diverso, mas nem por isso deixa de se
r um direito subjectivo. 
    Esta concepção bipartida é ainda defendida, entre nós, pelo professor Freitas do Amaral. Parece-me relevante analisar os exemplos dados por este autor para provar a existência dos tais direitos de 1ª e de 2ª.
    Para ilustrar um verdadeiro direito subjectivo este professor fala no exemplo do funcionário que ao fim de x anos de carreira tem de ser promovido porque a lei assim o determina. Titulares de interesses legítimos seriam, por exemplo, os candidatos para um concurso público para professores catedráticos. Para o professor Vasco Pereira da Silva este entendimento é falacioso, uma vez que confunde os direitos dos participantes no concurso com o direito daquele que venha a ganhar o concurso (trata-se de direitos de conteúdo e amplitude distintos, mas continuam, ainda assim, a tratar-se de direitos subjectivos).

    A partir de meados dos anos 70, com a evolução de um Estado Social para um Estado dito pós-Social, dá-se todo um conjunto de alterações no Direito Público, surgindo novas realidades que levam alguma doutrina a adoptar já não uma concepção bipartida, mas sim uma concepção trinitária dos direitos subjectivos. Passam a falar, ao lado dos direitos de 1ª e de 2ª dos direitos de 3ª, os intitulados direitos difusos.
    Esta construção difusa assenta, também, para o professor Vasco Pereira da Silva, num equívoco. Isto porque, não é por haver protecção objectiva que não poderá haver protecção subjectiva, que é o mesmo que se dizer que não é por algo ser de todos que deixa de ser, também, de cada um.
    Para além destas teorias houve ainda outras. A teoria dos direitos reactivos, já defendida em tempos também pelo professor Vasco Pereira da Silva, parte, aparentemente, da lógica alemã. Os propulsores desta doutrina vêm dizer que o particular em face da Administração é titular de direitos subjectivos, não havendo que distinguir entre direitos de 1ª, de 2ª e de 3ª. Não resulta claro o momento em que surge o direito, mas para os que preconizam esta teoria o direito que está em causa é o direito de reagir processual e procedimentalmente. O professor Vasco Pereira da Silva vem, mais tarde, alertar para o facto de se confundirem aqui direitos processuais com direitos substantivos.

    Por fim, a teoria que corresponde ao melhor e mais adequado entendimento é a chamada teoria da norma de protecção. Esta teoria foi construída no século XIX por Buehler, num segundo momento por Bachof, e, ainda, mais tarde, por Bauer e Wolff (sendo, entre nós, preconizada pelo professor Vasco Pereira da Silva).
    Estes 3 momentos correspondem a um progressivo alargamento da protecção do indivíduo.
    Buehler, no século XIX afirmava que sempre que uma norma jurídica criasse uma posição de vantagem estaríamos perante um direito subjectivo. Para tal este autor falava em três condições essenciais:
1 - Necessidade de existir uma norma imperativa que estabelecesse um dever de actuar pela Administração;
    2 - Essa norma tinha de existir com o propósito de proteger os particulares;
    3 - Possibilidade de o particular reagir contenciosamente (direito de reacção).
    Esta construção, entendida nestes moldes, correspondia ainda a um entendimento que tem de ser compreendido na lógica da Administração agressiva, uma visão relativamente limitada.
    Bachof vem reconstruir esta realidade em termos adequados ao Estado de Direito da actualidade. Retomando as 3 condições apontadas por Buehler, Bachof vem dizer que não é necessário que haja uma norma jurídica vinculativa, bastando-se com a existência de vinculações jurídicas. Relativamente ao segundo aspecto, o autor afirma que “de acordo com a ordem constitucional da Lei Fundamental, todas as situações de vantagem objectiva e intencionalmente concedidas transformam-se em direitos subjectivos”, e ainda que “a concessão de uma vantagem jurídica intencional, na dúvida, é um direito subjectivo”, alargando, assim, as normas que se considera estarem ao serviço da protecção de interesses individuais. Relativamente à terceira condição, Bachof entende que se trata não de uma condição mas sim de uma consequência da existência do direito, invocando a seu favor o artigo 19, IV da Lei Fundamental alemã (análogo ao artigo 268º/4 da nossa Constituição).
    Ainda num terceiro momento, dá-se, com Bauer, um alargamento da noção de direito subjectivo. Este autor vem chamar a atenção para a necessidade de se tratar de forma unitária todos os direitos subjectivos dos particulares perante a Administração, quer resultem de lei constitucional ou ordinária, acto ou contrato administrativo ou de regulamento. Isto porque nos anos 70 proliferam as relações jurídicas multilaterais, surgindo novos direitos que podem ser alegados não só pelo seu titular, mas também por quem possa por eles ser afectado (caso do pescador de chalupa)
    A própria jurisprudência contribuiu para este alargamento, sendo que esta corresponde, actualmente, à posição maioritária da doutrina alemã, seguida por autores como Bachof, Erichsen, Tschira, Krebs, Schmidt-Assmann, entre outros.

    Exposta a problemática, importa agora compreender quais serão, na prática as vantagens ou inconvenientes de um a concepção unitária ou tripartida dos direitos subjectivos.
    A concepção que me parece mais ajustada e adequada aos nossos dias é a unitária, que trata de forma igual todas as posições subjectivas dos particulares, independentemente da sua fonte. Olhando para a nossa ordem jurídica, vemos que o legislador português quando regula os direitos subjectivos os equipara aos direitos ou interesses legalmente protegidos, não fazendo qualquer distinção de regime (artigo 53º/1 do Código de Procedimento Administrativo). De facto, os direitos que estão em causa correspondem a uma categoria única. E este alargamento que ficou explicado corresponde a uma realidade que pode ser vista como a nova base para a construção do Direito Administrativo e a uma superação de alguns dos traumas da infância difícil do Direito Administrativo. Daí que, actualmente, faça sentido o brocardo “todos diferentes, todos iguais” no que respeita às relações entre os particulares e a Administração; isto porque, bem vistas as coisas, do ponto de vista jurídico, particular e entidade administrativa ao entrarem em relação encontram-se, de facto, numa posição paritária.
    Relativamente às concepções trinitárias, não existindo qualquer diferença de regime entre os tais direitos de 1ª, de 2ª e de 3ª, não parece razoável continuar a segui-las.
    Uma última nota prende-se com o facto de uma concepção unitária reforçar os princípios do Estado de Direito em que vivemos, em que se multiplicam as relações multilaterais e se afigura fundamental assegurar uma cada vez maior protecção das posições jurídicas individuais em face da Administração.

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