O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E
A MARGEM DE LIVRE DECISÃO
ADMINISTRATIVA
Exposição com base na seguinte obra:
SOUSA, Marcelo Rebelo de e MATOS, André Salgado de - Direito Administrativo Geral, tomo I - Introdução e Princípios Fundamentais, Dom Quixote, 2010 (3ª edição reimpressão), pp.187-207
A margem de livre decisão administrativa “consiste num espaço
de liberdade da actuação administrativa conferido por lei e limitado pelo bloco
de legalidade” (p.183). Esta liberdade limita-se às escolhas de segundo grau,
as definições primárias encontram-se no âmbito da função política e não
administrativa. Além disso, esta liberdade só existe na escolha entre actuações
permitidas pela lei (ter em conta
conceito amplo como já referido anteriormente), não basta que não sejam
proibidas.
Existem duas razões políticas que fundamentam a
margem de livre decisão:
1. “Limitação prática da função legislativa
que se deve resumir à prática de actos gerais e abstractos” (apesar de
actualmente grande parte da doutrina aceitar uma concepção meramente formal e
defender ser esta a tese adoptada pela CRP: art.18º/3 como norma excepcional, arts.29º e 37º/3, 32º/2, especialmente o art.268º/4, entre outras).
2. “Princípio da separação de poderes
enquanto critério de distribuição racional das funções do Estado pelos seus
órgãos” – a Administração pela sua própria natureza está muito mais apta a
resolver as situações concretas, sempre com especificidades muitas vezes
imprevisíveis; assim, é através da adaptação da lei aos casos concretos que é
possível a prossecução do interesse público.
A margem de livre
decisão permite assim a obtenção de uma maior justiça e adequação na aplicação
do direito que compensam a lesão na segurança jurídica e a existência de desigualdades
que possam derivar desta liberdade administrativa.
Como
consequência, referem os Professores, as actuações administrativas
praticadas ao abrigo da margem de livre decisão apenas são susceptíveis de
controlo jurisdicional relativamente ao respeito pelas vinculações normativas e
pelos limites internos dessa margem de liberdade. É ainda de ter em conta
que os tribunais não controlam o mérito das actuações administrativas
(oportunidade e conveniência), mas apenas a legalidade. Perante esta afirmação,
será de perguntar se o mérito não implica com os princípios da
proporcionalidade e, quiçá, da prossecução do interesse público, princípios
estes que vinculam a actuação da Administração… É também nesta linha que se
pergunta ainda: tendo em conta o princípio da legalidade em sentido amplo
(princípio da juridicidade) não há sempre normas, valores do ordenamento que
exigem ser concretizados em cada decisão? Os Professores defendem que, em nome
da separação de poderes, não deve haver controlo jurisdicional da margem de
livre decisão administrativa porque “subjacente à sua atribuição à
administração está um juízo do legislador, segundo o qual o interesse público
será melhor prosseguido se a última palavra decisória no caso concreto
pertencer à administração (e não aos tribunais)” (p.185). Este controlo pelos
tribunais levaria a que estes estivessem a exercer a função administrativa –
“dupla administração”.
Apesar
de tudo, o que nos parece indiscutível é a posição do Professor Vasco Pereira
da Silva que defende a impossibilidade prática de em cada decisão existir apenas liberdade ou apenas vinculação. Na
prática, a discricionariedade (entendida aqui sem sentido lato) e a vinculação
estão presentes nos 3 momentos da actuação jurídica: interpretação (pode
haver várias interpretações possíveis, com aplicação dos critérios legais e é
necessário escolher uma); aplicação das normas aos factos (apreciação
dos factos: quais factos são relevantes e quais não são, ter em conta o que a
lei determina como relevante…) e decisão (Quando? Como? De que modo? E
ao mesmo tempo, subordinação ao Orçamento, p.ex.). no fundo, este esforço de
transposição de uma realidade normativa para o mundo dos factos exige sempre
uma actividade com uma dimensão criadora.
Além disso, dado que a
vinculação da Administração é perante o bloco de legalidade, dificilmente se concebe
que haja espaço para a Administração agir sem que a sua actuação afecte
qualquer norma jurídica e sem que possa, nessa medida, ser contestada pelo
particular e julgada pelos tribunais. Na verdade, os valores e princípios são
imperativos de optimização (apresentam um caminho para procurar solução) e
entram muitas vezes em conflito. Assim a decisão de optar por concretizar mais
um valor/princípio (geralmente é justiça vs. segurança jurídica) em detrimento
de outro é uma decisão que cabe à Administração e não parece susceptível de
apreciação jurisdicional. Mas, por outro lado, configuram-se situações em que o
mesmo valor pode conduzir a duas ou mais possibilidades de decisão… por
exemplo, a determinação de um “prazo razoável”. Neste caso, a Administração irá
decidir tendo em conta as especificidades concretas. Pode-se então dizer que
aqui há apenas discricionariedade (e, por isso, não há lugar ao controlo
jurisdicional) ou ainda assim a Administração está vinculada aos valores do
ordenamento jurídico? No fundo quer-se saber o que cabe na previsão da primeira
parte do art.71º/2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos que diz:
“Quando a emissão do acto pretendido envolva
a formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa e a
apreciação do caso concreto não permita identificar apenas uma solução como
legalmente possível, o tribunal não pode determinar o conteúdo do acto a
praticar, mas deve explicitar as vinculações a observar pela Administração na
emissão do acto devido”.
No
fundo a dúvida que se levanta é: com esta acepção ampla do princípio da
legalidade (lei como bloco de legalidade) está-se perante um reforço da
protecção dos particulares (mais fontes, mais vinculação) ou antes, pela sua
abrangência, uma perda de concretização que só os desprotege (tudo vincula,
nada vincula)?
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