quinta-feira, 18 de abril de 2013

NOÇÃO DE ACTO ADMINISTRATIVO


O nosso Código de Procedimento Administrativo (CPA) apresenta, no seu art.120º, uma noção de acto administrativo. Porém, a doutrina diverge quanto ao verdadeiro sentido da noção acto administrativo e do preceito. Para melhor compreensão apresentam-se, seguidamente, as duas teses em contraposição.

Concepção ampla
[orientação francesa, dominante em PT]

Acto do poder público produtor de efeitos jurídicos (distinção posterior entre actos recorríveis e não recorríveis).

A noção de acto administrativo surgiu numa lógica liberal de protecção da Administração. Adoptou-se uma concepção ampla de actos administrativos de forma a “delimitar as acções da Administração Pública excluídas por lei da fiscalização dos tribunais judiciais” (Curso de Direito Administrativo, p.232) – leis 16/24 de Agosto de 1790. Como diz o Professor Freitas do Amaral, era “um conceito que funcionava ao serviço da independência da Administração perante o Poder Judicial” (Curso de Direito Administrativo, p.232). A partir do final do séc.XVIII, com a instituição do contencioso privativo da Administração, o conceito de acto administrativo vai servir antes como garantia dos particulares. Vai-se distinguir entre actos de autoridade e actos de gestão, sendo que só os primeiros estão sujeitos à apreciação dos tribunais administrativos, responsáveis pela garantia dos direitos dos particulares contra as intromissões excessivas da Administração. A partir daqui o controlo jurisdicional incide apenas sobre “os actos e as operações que se ligam ao exercício do poder público” (Laferrière).
Em Portugal, esta concepção ampla (dentro da qual se distinguiam os actos recorríveis e não recorríveis) vem da tradição do Professor Marcello Caetano. Para este Professor o acto administrativo era uma “conduta voluntária de um órgão da Administração que, no exercício de um poder público e para a prossecução dos interesses postos por lei a seu cargo, produza efeitos jurídicos num caso concreto” (citado em Em busca do acto administrativo, p.613). Desta noção se pode destacar os actos que definitivos e executórios, tendo em conta um modelo autoritário, herdado ironicamente do período liberal (Otto Mayer e Maurice Hauriou). Através deste tipo de actos há uma definição unilateral do direito no caso concreto e este acto é “um imperativo obrigatório, susceptível de execução forçadqa pela Administração contra o particular” (ver Em busca do acto administrativo, p.615).


Concepção restrita
[orientação alemã e austríaca, em PT: Professores Rogério Soares, Sérvulo Correia, Vieira de Andrade e, recentemente, Freitas do Amaral]

Acto final regulador ou produtor de efeitos jurídicos novos relativamente ao particular (acto recorrível). Deixa-se de parte os chamados actos administrativos instrumentais, aqueles que não são decisórios e desempenham uma função auxiliar em relação aos actos administrativos (p.ex.: optar por ouvir peritos, pedir a emissão de pareceres, ordenar a junção de provas…) - ver Curso de Direito Administrativo, pp.250-252.

Esta concepção nasceu na jurisprudência e foi concretizada na doutrina por Laferrière. No fundo, acrescenta à noção ampla a característica da recorribilidade que só existe naquelas decisões que são susceptíveis de serem lesivas dos direitos dos particulares (Em busca do acto administrativo, p.575). 

Foi o Professor Rogério Soares que importou para Portugal a concepção restrita. O seu pensamento traduziu-se numa forma de reacção contra a herança clássica positivista, muito presente no ordenamento jurídico português devido ao papel preponderante que tinha o Professor Marcello Caetano. O Professor Rogério Soares contestou em primeira linha a característica da executoriedade. Deixou-se este autor impressionar pela doutrina alemã que consagrava na sua legislação o acto administrativo como regulador. No fundo, há uma correspondência com a ideia tradicional de acto administrativo como definitório. Este autor partiu da razão de ser do conceito de acto administrativo que, como já vimos, esteve sempre muito ligada à função jurisdicional. Neste caso, o Professor defendeu que o conceito de acto administrativo tinha como fundamento da sua existência a “realização do princípio da garantia jurisdicional do particular em facedos órgãos públicos” (citado em Em busca do acto administrativo, p.616). Assim o acto administrativo é aquele que é susceptível de impugnação contenciosa e só o é se produzir efeitos jurídicos externos, positivos ou negativos (estatuição autoritária – acto definitório). Esta concepção restrita deixa de fora “a maior parte das actuações administrativas de carácter prestador ou constitutivo” (Em busca do acto administrativo, p.616). Do acto administrativo distingui o Professor Rogério Soares os actos instrumentais (que não são verdadeiramente actos). No entanto, apesar de definir actos administrativos com base num elemento processual, o Professor afirma que nem contra todos se pode interpor um recurso contencioso directo e imediato, em nome da separação de competências (pode-se exigir em 1º lugar o recurso hierárquico).

Também o Professor Sérvulo Correia defende uma concepção restrita de acto administrativo, que novamente se distingue da ampla porque embarca na noção de acto administrativo a sua função definidora. Porém, este Professor defende que os actos administrativos não são necessariamente constitutivos. Podem ser meramente declarativos ou enunciativos, desde que dessas verificações dependam consequências para as situações jurídico-administrativas. Diz o Professor Vasco Pereira da Silva que este alargamento corresponde melhor a uma visão ampla… Este autor distingue entre actos administrativos (autênticos) e auxiliares, o que no fundo, equivale à distinção do Professor Rogério Soares. Quanto à recorribilidade, este autor defende que os actos administrativos “podem não ser desde logo passíveis” de impugnação contenciosa “mas destinam-se tendencialmente a chegar a esse estádio através da aquisição dos requisitos da definitividade e da executoriedade” (citado em Em busca do acto administrativo, p.620). Posição esta que é contraditória com a visão restritiva.
O Professor Vasco Pereira da Silva faz as seguintes críticas a esta concepção restrita:

a)       Há uma contradição nos termos ao chamar actos instrumentais quando não são na verdade considerados para estes autores verdadeiros actos.
b)       A ideia de que os actos instrumentais não têm autonomia relativamente aos actos administrativos proprio sensu reflecte uma visão ultrapassada “que desvaloriza o procedimento administrativo e se preocupa apenas com o produto final (o que vai ao arrepio da visão sedimentada em Portugal que levou à criação do CPA).
c)        Além disso, tem subjacente a ideia (também desactualizada) de que as decisões administrativas são meras executoras da lei, desprezando a sua função actualíssima de prestação e constituição de direitos.
d)       Definir o acto administrativo com base num elemento adjectivo e depois não retirar as suas consequências na totalidade parece contraditório. Ou acto administrativo é um conceito amplo que abarca actos recorríveis e não recorríveis; ou é um conceito mais restrito e não faz sentido distinguir os actos de acordo com a recorribilidade (ou são actos ou não são).
De facto, não se distingue substancialmente os actos recorríveis dos não recorríveis, uma vez que são todos produtores de efeitos jurídicos. Além disso, mesmo a nível de garantia, a sua separação não é tão marcada como parece. É que, mesmo os actos chamados “não lesivos” apesar de não poderem ser contenciosamente recorríveis, não se encontram desprovidos de controlo jurisdicional: “podem ser indirectamente apreciados aquando do recurso de anulação de um acto lesivo (quando se inserirem no procedimento administrativo que dá origem à emissão daquele acto)” e “podem ser objecto de fiscalização autónoma através de outros meios juridsdcicionais” (ver Em busca do acto administrativo, pp.625 e 628). Diz o Professor Vasco Pereira da Silva: “não faz qualquer sentido pegar num pressuposto processual do recurso de anulação, que é o da afectaçãi de direitos dos particulares (artigo 268º, nº4 da Constituição) e, com base nele, pretender criar um conceito substantivo de acto recorrível distinto dos demais actos administrativos” (Em busca do acto administrativo,p.268).

Esta doutrina foi defendida recentemente pelo Professor Freitas do Amaral. Diz o Professor Freitas do Amaral que o acto administrativo é um “acto jurídico unilateral, praticado no exercício do poder administrativo, por um órgão da Administração ou por outra entidade pública ou privada para tal habilitada por lei, e que traduz a decisão de um caso considerado pela Administração, visando produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta” (pp.238 e 239). Para isso, recorreu a argumentos literais, do Código de Procedimento Administrativo (art.120º):
O preceito fala em “decisões dos órgãos da Administração”. Este uso da palavra “decisões” remete para a lógica das sentenças judiciais. Está em causa uma “estatuição ou resolução de um caso”, logo, um conceito estrito de decisão, diferente do amplo que engloba os conceitos de “declaração” ou “pronúncia” (pp.249 e 250). Além disso, defende o Professor, ser esta restrição mais conforme com a teleologia da norma que só seja de submeter ao regime do CPA aqueles actos capazes de “produzir uma transformação jurídica externa”. Porém, diz o Professor Vasco Pereira da Silva, que o argumento não procede pela simples razão de que este vocábulo não tem exclusivamente esse sentido judiciário… bem pelo contrário: fala-se igualmente em decisões políticas e em decisões dos particulares.



Art.120º CPA – qual a noção adoptada?

Uma vez que não parecem proceder os argumentos literais usados pelo Professor Freitas do Amaral, tudo parece indicar no sentido de o legislador ter adoptado uma noção ampla.
Apesar disso, o Professor Vasco Pereira da Silva aponta as seguintes críticas, dizendo que os actos administrativos:
-    Não são decisões apenas dos órgãos da Administração.
Na verdade, os particulares também intervêm no exercício da função administrativa e as suas decisões nesse âmbito são verdadeiros actos administrativos. Este art.120º deve ser interpretado em consonância com o art.2º do mesmo diploma. Nessa linha, diz o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais no seu art.4º, alíneas b), c) e d), que estes tribunais são competentes para fiscalizar a “legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal”, de “actos materialmente administrativos, praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública”; e das “normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos”.
Dito isto, seria talvez benéfico introduzir uma delimitação do âmbito dos actos administrativos com referência ao exercício da função administrativa.
No mesmo sentido, vai a opinião e leitura do Professor Freitas do Amaral (pp.245 a 249).
-    São um “momento” do procedimento administrativo (podendo nem ser o final).
-    Constituem, modificam ou extinguem relações jurídicas administrativas.
-    Produzem efeitos de acordo com a vontade da Administração Pública (unilateralidade), mas só em relação a situações individuais e concretas (dizem respeito a um indivíduo ou a um conjunto restrito de indivíduos, a uma situação de vida específica).
Esta exigência de individualidade e concretude só surge relativamente aos actos administrativos e impede a qualificação administrativos os actos que se reportem a “categorias abstractamente referidas de cidadãos, mesmo que determinados ou determináveis” (CPA anotado, p.223) – ver art.123º/2/b) CPA. Os regulamentos são, em regra, gerais e abstractos, mas a doutrina tende para incluir, e bem, nesta categoria, as situações intermédias: actos gerais mas concretos; actos individuais mas abstractos (ex.: planos).
-    Não devem ser distinguidos os externos dos internos (num Estado de Direito como o nosso, e com base em artigos constitucionais como o 1º, 2º, 3º, 18º e 266º, estes já não são mais “relações especiais de poder”)



Posição do Professor Vasco Pereira da Silva

O Professor Vasco Pereira da Silva adopta uma concepção ampla uma vez que só esta parece adaptar-se à realidade actual. Nos dias de hoje, com o surguimento dos actos prestadores e constitutivos multilaterais, uma noção restrita não consegue abranger estes actos nem mesmo todos aqueles que carecem de tutela jurisidicional (ver Em busca do acto administrativo, pp.620 e 621). Assim, diz o Professor que os actos administrativos já não podem ser caracterizados por: efeito regulador (há actos prestadores e constitutivos); produção individualizada de efeitos relativamente a um concreto particular (existência de relações jurídicas multilaterais que não afectam somente os seus destinatários directos e de actos que afectam apenas a Administração); executoriedade (este é um privilégio subjectivo da Administração e que só existe nos casos especialmente previstos na lei).

Segundo o Professor Vasco Pereira da Silva, o acto administrativo é “qualquer manifestação unilateral de vontade, de conhecimento ou de desejo, proveniente da Administração Pública e destinada à satisfação de necessidades colectivas que, praticada no decurso de um procedimento, se destina à produção de esfeitos jurídicos de carácter individual e concreto”.




BIBLIOGRAFIA

AMARAL, Diogo Freitas do [et al] – Código do Procedimento Administrativo Anotado, Almedina, 2007 (6ª edição).

AMARAL, Diogo Freitas do - Curso do Direito Administrativo - volume II, Almedina, 2012 (2ª edição).

SOUSA, Marcelo Rebelo de e MATOS, André Salgado de – Direito Administrativo Geral, tomo I – Introdução e Princípios Fundamentais, Dom Quixote, 2010 (3.ª edição reimpressão). 



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