O nosso Código de Procedimento Administrativo (CPA) apresenta, no seu art.120º, uma noção de acto
administrativo. Porém, a doutrina diverge quanto ao verdadeiro sentido da noção
acto administrativo e do preceito. Para melhor compreensão apresentam-se,
seguidamente, as duas teses em contraposição.
Concepção ampla
[orientação francesa,
dominante em PT]
Acto do poder público produtor de efeitos jurídicos (distinção
posterior entre actos recorríveis e não recorríveis).
A noção de acto administrativo surgiu
numa lógica liberal de protecção da Administração. Adoptou-se uma concepção
ampla de actos administrativos de forma a “delimitar as acções da Administração
Pública excluídas por lei da fiscalização dos tribunais judiciais” (Curso de Direito Administrativo, p.232)
– leis 16/24 de Agosto de 1790. Como diz o Professor Freitas do Amaral, era “um
conceito que funcionava ao serviço da independência da Administração perante o
Poder Judicial” (Curso de Direito
Administrativo, p.232). A partir do final do séc.XVIII, com a instituição
do contencioso privativo da Administração, o conceito de acto administrativo vai
servir antes como garantia dos particulares. Vai-se distinguir entre actos de
autoridade e actos de gestão, sendo que só os primeiros estão sujeitos à
apreciação dos tribunais administrativos, responsáveis pela garantia dos
direitos dos particulares contra as intromissões excessivas da Administração. A
partir daqui o controlo jurisdicional incide apenas sobre “os actos e as
operações que se ligam ao exercício do poder público” (Laferrière).
Em Portugal, esta concepção ampla (dentro
da qual se distinguiam os actos recorríveis e não recorríveis) vem da tradição
do Professor Marcello Caetano. Para este Professor o acto administrativo era
uma “conduta voluntária de um órgão da Administração que, no exercício de um
poder público e para a prossecução dos interesses postos por lei a seu cargo, produza efeitos jurídicos num caso
concreto” (citado em Em busca do acto
administrativo, p.613). Desta noção se pode destacar os actos que
definitivos e executórios, tendo em conta um modelo autoritário, herdado
ironicamente do período liberal (Otto Mayer e Maurice Hauriou). Através deste
tipo de actos há uma definição unilateral do direito no caso concreto e este
acto é “um imperativo obrigatório, susceptível de execução forçadqa pela
Administração contra o particular” (ver Em
busca do acto administrativo, p.615).
Concepção restrita
[orientação alemã e austríaca,
em PT: Professores Rogério Soares, Sérvulo Correia, Vieira de Andrade e, recentemente,
Freitas do Amaral]
Acto final regulador ou produtor de efeitos jurídicos novos
relativamente ao particular (acto recorrível). Deixa-se de parte os
chamados actos administrativos instrumentais, aqueles que não são decisórios e
desempenham uma função auxiliar em relação aos actos administrativos (p.ex.:
optar por ouvir peritos, pedir a emissão de pareceres, ordenar a junção de
provas…) - ver Curso de Direito
Administrativo, pp.250-252.
Esta concepção nasceu na
jurisprudência e foi concretizada na doutrina por Laferrière. No fundo,
acrescenta à noção ampla a característica da recorribilidade que só existe
naquelas decisões que são susceptíveis de serem lesivas dos direitos dos
particulares (Em busca do acto
administrativo, p.575).
Foi o Professor Rogério Soares que
importou para Portugal a concepção restrita. O seu pensamento traduziu-se numa
forma de reacção contra a herança clássica positivista, muito presente no
ordenamento jurídico português devido ao papel preponderante que tinha o
Professor Marcello Caetano. O Professor Rogério Soares contestou em primeira
linha a característica da executoriedade. Deixou-se este autor impressionar pela
doutrina alemã que consagrava na sua legislação o acto administrativo como
regulador. No fundo, há uma correspondência com a ideia tradicional de acto administrativo
como definitório. Este autor partiu da razão de ser do conceito de acto
administrativo que, como já vimos, esteve sempre muito ligada à função
jurisdicional. Neste caso, o Professor defendeu que o conceito de acto
administrativo tinha como fundamento da sua existência a “realização do
princípio da garantia jurisdicional do particular em facedos órgãos públicos”
(citado em Em busca do acto
administrativo, p.616). Assim o acto administrativo é aquele que é susceptível
de impugnação contenciosa e só o é se produzir efeitos jurídicos externos,
positivos ou negativos (estatuição autoritária – acto definitório). Esta concepção
restrita deixa de fora “a maior parte das actuações administrativas de carácter
prestador ou constitutivo” (Em busca do
acto administrativo, p.616). Do acto administrativo distingui o Professor
Rogério Soares os actos instrumentais (que não são verdadeiramente actos). No
entanto, apesar de definir actos administrativos com base num elemento
processual, o Professor afirma que nem contra todos se pode interpor um recurso
contencioso directo e imediato, em nome da separação de competências (pode-se
exigir em 1º lugar o recurso hierárquico).
Também o Professor Sérvulo Correia
defende uma concepção restrita de acto administrativo, que novamente se
distingue da ampla porque embarca na noção de acto administrativo a sua função
definidora. Porém, este Professor defende que os actos administrativos não são
necessariamente constitutivos. Podem ser meramente declarativos ou
enunciativos, desde que dessas verificações dependam consequências para as
situações jurídico-administrativas. Diz o Professor Vasco Pereira da Silva que
este alargamento corresponde melhor a uma visão ampla… Este autor distingue
entre actos administrativos (autênticos) e auxiliares, o que no fundo, equivale
à distinção do Professor Rogério Soares. Quanto à recorribilidade, este autor
defende que os actos administrativos “podem não ser desde logo passíveis” de
impugnação contenciosa “mas destinam-se tendencialmente a chegar a esse estádio
através da aquisição dos requisitos da definitividade e da executoriedade”
(citado em Em busca do acto
administrativo, p.620). Posição esta que é contraditória com a visão
restritiva.
O Professor Vasco Pereira da Silva
faz as seguintes críticas a esta concepção restrita:
a)
Há uma contradição
nos termos ao chamar actos
instrumentais quando não são na verdade considerados para estes autores
verdadeiros actos.
b)
A ideia de que os actos instrumentais não têm
autonomia relativamente aos actos administrativos proprio sensu reflecte uma visão
ultrapassada “que desvaloriza o procedimento administrativo e
se preocupa apenas com o produto final (o que vai ao arrepio da visão
sedimentada em Portugal que levou à criação do CPA).
c)
Além disso, tem subjacente a ideia (também
desactualizada) de que as decisões administrativas são meras executoras da lei,
desprezando a sua função actualíssima de prestação e constituição de
direitos.
d)
Definir o
acto administrativo com base num elemento adjectivo e depois
não retirar as suas consequências na totalidade parece contraditório. Ou acto
administrativo é um conceito amplo que abarca actos recorríveis e não
recorríveis; ou é um conceito mais restrito e não faz sentido distinguir os
actos de acordo com a recorribilidade (ou são actos ou não são).
De facto,
não se distingue substancialmente os actos recorríveis dos não recorríveis, uma
vez que são todos produtores de efeitos jurídicos. Além disso, mesmo a nível de
garantia, a sua separação não é tão marcada como parece. É que, mesmo os actos
chamados “não lesivos” apesar de não poderem ser contenciosamente recorríveis, não
se encontram desprovidos de controlo jurisdicional: “podem ser indirectamente
apreciados aquando do recurso de anulação de um acto lesivo (quando se
inserirem no procedimento administrativo que dá origem à emissão daquele acto)”
e “podem ser objecto de fiscalização autónoma através de outros meios
juridsdcicionais” (ver Em busca do acto
administrativo, pp.625 e 628). Diz o Professor Vasco Pereira da Silva: “não
faz qualquer sentido pegar num pressuposto processual do recurso de anulação,
que é o da afectaçãi de direitos dos particulares (artigo 268º, nº4 da
Constituição) e, com base nele, pretender criar um conceito substantivo de acto
recorrível distinto dos demais actos administrativos” (Em busca do acto administrativo,p.268).
Esta doutrina foi defendida
recentemente pelo Professor Freitas do Amaral. Diz o Professor Freitas do
Amaral que o acto administrativo é um “acto
jurídico unilateral, praticado no exercício do poder administrativo, por um
órgão da Administração ou por outra entidade pública ou privada para tal
habilitada por lei, e que traduz a decisão
de um caso considerado pela Administração, visando produzir efeitos jurídicos
numa situação individual e concreta” (pp.238 e 239). Para isso, recorreu a
argumentos literais, do Código de Procedimento Administrativo (art.120º):
O preceito fala em “decisões dos órgãos da Administração”.
Este uso da palavra “decisões” remete para a lógica das sentenças judiciais. Está
em causa uma “estatuição ou resolução de um caso”, logo, um conceito estrito de
decisão, diferente do amplo que
engloba os conceitos de “declaração” ou “pronúncia” (pp.249 e 250). Além disso,
defende o Professor, ser esta restrição mais conforme com a teleologia da norma
que só seja de submeter ao regime do CPA aqueles actos capazes de “produzir uma
transformação jurídica externa”. Porém, diz o Professor Vasco Pereira da Silva,
que o argumento não procede pela simples razão de que este vocábulo não tem
exclusivamente esse sentido judiciário… bem pelo contrário: fala-se igualmente
em decisões políticas e em decisões dos particulares.
Art.120º CPA – qual a noção adoptada?
Uma vez que não parecem proceder os
argumentos literais usados pelo Professor Freitas do Amaral, tudo parece
indicar no sentido de o legislador ter adoptado uma noção ampla.
Apesar disso, o Professor Vasco
Pereira da Silva aponta as seguintes críticas,
dizendo que os actos administrativos:
- Não são decisões apenas dos órgãos da Administração.
Na verdade,
os particulares também intervêm no exercício da função administrativa e as suas
decisões nesse âmbito são verdadeiros actos administrativos. Este art.120º deve
ser interpretado em consonância com o art.2º do mesmo diploma. Nessa linha, diz
o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais no seu art.4º, alíneas b),
c) e d), que estes tribunais são competentes para fiscalizar a “legalidade das
normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de
direito administrativo ou fiscal”, de “actos materialmente administrativos,
praticados por quaisquer órgãos do Estado
ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública”;
e das “normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos”.
Dito isto,
seria talvez benéfico introduzir uma delimitação do âmbito dos actos
administrativos com referência ao exercício da função administrativa.
No mesmo
sentido, vai a opinião e leitura do Professor Freitas do Amaral (pp.245 a 249).
- São um “momento” do procedimento administrativo (podendo
nem ser o final).
- Constituem, modificam ou extinguem relações jurídicas
administrativas.
- Produzem efeitos de acordo com a vontade da
Administração Pública (unilateralidade), mas só em relação a situações
individuais e concretas (dizem respeito a um indivíduo ou a um conjunto
restrito de indivíduos, a uma situação de vida específica).
Esta
exigência de individualidade e concretude só surge relativamente aos actos
administrativos e impede a qualificação administrativos os actos que se
reportem a “categorias abstractamente referidas de cidadãos, mesmo que
determinados ou determináveis” (CPA anotado, p.223) – ver art.123º/2/b) CPA. Os
regulamentos são, em regra, gerais e abstractos, mas a doutrina tende para
incluir, e bem, nesta categoria, as situações intermédias: actos gerais mas
concretos; actos individuais mas abstractos (ex.: planos).
- Não devem ser distinguidos os externos dos internos (num Estado
de Direito como o nosso, e com base em artigos constitucionais como o 1º, 2º,
3º, 18º e 266º, estes já não são mais “relações especiais de poder”)
Posição do Professor Vasco Pereira da Silva
O Professor Vasco Pereira da
Silva adopta uma concepção ampla uma vez que só esta parece adaptar-se à
realidade actual. Nos dias de hoje, com o surguimento dos actos prestadores e constitutivos
multilaterais, uma noção restrita não consegue abranger estes actos nem mesmo
todos aqueles que carecem de tutela jurisidicional (ver Em busca do acto administrativo, pp.620 e 621). Assim, diz o
Professor que os actos administrativos já não podem ser caracterizados por: efeito regulador (há actos prestadores e
constitutivos); produção individualizada
de efeitos relativamente a um concreto particular (existência de relações
jurídicas multilaterais que não afectam somente os seus destinatários directos
e de actos que afectam apenas a Administração); executoriedade (este é um privilégio subjectivo da Administração e que só
existe nos casos especialmente previstos na lei).
Segundo o Professor Vasco Pereira da Silva, o acto administrativo é “qualquer
manifestação unilateral de vontade, de conhecimento ou de desejo, proveniente
da Administração Pública e destinada à satisfação de necessidades colectivas
que, praticada no decurso de um procedimento, se destina à produção de esfeitos
jurídicos de carácter individual e concreto”.
BIBLIOGRAFIA
AMARAL, Diogo Freitas do [et al] – Código do Procedimento Administrativo Anotado, Almedina, 2007 (6ª edição).
AMARAL, Diogo Freitas do - Curso do Direito Administrativo - volume II, Almedina, 2012 (2ª edição).
SOUSA, Marcelo Rebelo de e MATOS, André Salgado de – Direito Administrativo Geral, tomo I – Introdução e Princípios Fundamentais, Dom Quixote, 2010 (3.ª edição reimpressão).
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