quarta-feira, 3 de abril de 2013

Poder discricionário ("sal e pimenta a gosto") e princípios fundamentais (quanto sal e quanta pimenta?)


    A Administração actua com base na lei, adoptando critérios legais e tomando posteriormente decisões quanto à questão final e última que determinou a sua actuação. Tudo isto está sujeito a um controlo que será diferente consoante o poder seja discricionário ou vinculado. Ao contrário do que se poderia pensar, há sempre vínculos que permitem o controlo da administração dentro da margem da discricionariedade que lhe é permitida.           Tradicionalmente, as duas vinculações que existiam em relação ao poder discricionário eram a competência (que é sempre vinculada) e o fim legal da sua actuação. Estes dois vínculos continuam a existir para qualquer actuação da administração. Contudo, actualmente, há outros que a obrigam, desde logo os princípios constitucionais.
    No universo dos princípios fundamentais encontramos os princípios da organização e do funcionamento da Administração Pública, como o princípio da desburocratização, da descentralização, desconcentração, da unidade, entre outros; e, ainda, os princípios que orientam a própria actuação administrativa, como o princípio da legalidade, da prossecução do interesse público, da proporcionalidade, igualdade, boa fé, justiça, etc.
    Enquanto vínculos da actuação administrativa no exercício do seu poder discricionário é sobretudo este segundo grupo que nos interessa, embora devamos ter sempre em conta que todos os outros se encontram subjacentes à lógica do funcionamento da Administração Pública como um todo, sendo igualmente interessante conhecê-los e compreendê-los.

    Antes de proceder a uma breve exposição de dois dos princípios que obrigam a Administração no exercício dos seus poderes discricionários (nomeadamente, o princípio da proporcionalidade e o princípio da igualdade), parece-me fundamental compreender o que está realmente subjacente a estes conceitos, de uma forma sucinta e apreensível ao senso comum.
    Pensando numa receita simples, por exemplo, de uma omelete, o primeiro passo é, naturalmente, ler a receita. Depois de anotar quais os ingredientes necessários, teremos de ver quais os que temos no frigorífico e eventualmente ir à mercearia adquirir os que estão em falta. Sabemos que temos de utilizar 5 ovos, 2 fatias de pão, sal e pimenta (...), e na escolha da qualidade dos ovos que iremos utilizar, se adicionaremos pimenta branca ou preta, ou que tipo de pão queremos cozinhar, estamos a fazer uma escolha, pela qual somos responsáveis. É precisamente neste campo, que implica uma margem de escolha, que se encontra o poder discricionário da entidade administrativa. Esta escolha, naturalmente, tem de ser feita dentro da margem, é controlada, e é neste controlo que se fala nos princípios que obrigam a Administração. Poderemos escolher qual a pimenta que utilizaremos e a quantidade que queremos adicionar; só não podemos exceder aquela quantidade razoável que traça a diferença entre cozinharmos uma omelete saborosa e estragarmos a receita por completo. A diferença entre uma actuação da administração lícita, e uma actuação ilegal.

    Os princípios da igualdade e da proporcionalidade estão previstos no artigo 5º do CPA, assim como no artigo 266º/2 CRP. Importa considera-los separadamente, sem prejuízo de tecer alguns comentários simultaneamente aos dois.

    O princípio da proporcionalidade, com concretizações nos artigos 18º/2 e 19º/4 da Constituição e 5º do Código do Procedimento Administrativo, tem de ser entendido em três dimensões:
    1.       Adequação, que se traduz na proibição de condutas administrativas inaptas para a prossecução do fim que concretamente visam prosseguir;
    2.       Necessidade, ou proibição do excesso, que impõe que entre vários meios de actuação igualmente adequados se escolha o menos lesivo para os interesses em causa;
    3.       Proporcionalidade em sentido estrito, ou razoabilidade, que impõe que os custos da actuação administrativa não sejam superiores aos benefícios que se esperam com essa actuação.
    Importa referir que nenhuma destas dimensões pode ser preterida, sob pena se violar o princípio da proporcionalidade. Uma última nota prende-se com o facto de ainda que o artigo 5º/2 CPA configure este princípio com um carácter meramente subjectivo, por força do artigo 266º/2 CRP, devemos entender que ele assume, igualmente, uma dimensão objectiva, valendo para todas as decisões administrativas.

    A vinculação da administração ao princípio da igualdade decorre, desde logo, do artigo 5º/1 do Código do Procedimento Administrativo e, a nível da lei fundamental, do artigo 266º/2 e 13º, bem como de outros perceitos como o 9º h), 47º/2, 50º/1, 55º/2, 58º/2 b) e 59º CRP. Este princípio, entendido de modo meramente formal, implica o tratamento igualitário de todos os particulares nas relações administrativas, impedindo que uns sejam privilegiados em detrimento de outros. Temos, porém, de tomar em atenção uma dimensão mais substancial, de acordo com a qual se deverão, de facto, tratar de forma igual as situações idênticas mas, também, tratar de forma diferente as situações que devam ser diferenciadas.
    O princípio da igualdade pode ser entendido como uma ramificação do princípio da justiça, na medida em que tem o seu cerne no conceito de Aristóteles de acordo com o qual "a justiça consiste em dar a cada um aquilo que é seu".
    Do exposto se retira que o princípio da igualdade implica que se tenham em consideração dois momentos distintos: em primeiro lugar, que se avaliem as situações para concluir se estas devem ou não ser consideradas substancialmente idênticas; posteriormente, que se assegure um tratamento dessas situações conforme com a medida da sua semelhança ou (se for o caso) dissemelhança.
    Uma última nota que me parece importante realçar prende-se com o facto de este princípio dever ser entendido num sentido negativo e num sentido positivo. O primeiro implica que a administração tenha o dever de não agir de modo a provocar desigualdades; ao passo que o segundo impõe à administração o dever de agir no sentido de corrigir ou evitar eventuais desigualdades.

    Apesar do esforço jurisprudencial e doutrinal no sentido de uma melhor concretização deste princípio (pense-se, por exemplo, no Ac. Do STA de 29 de Abril de 1993, AD nº 385 p. 53 e ss., que integra no conceito de igualdade a proibição do arbítrio e de discriminação), a verdade é que embora já não se discuta que este se trata de um dos princípios fundamentais que enformam a actuação da Administração, a verdade é que este é, ainda, dotado de uma reduzida operatividade. Isto porque é extremamente difícil demonstrar num tribunal que duas situações similares foram tratadas de forma diversa, já para não falar da quase impossibilidade prática de se provar a existência de duas situações completamente idênticas. O princípio adquire maior relevância quando, por exemplo, estamos perante discriminações dentro do mesmo contexto procedimental, como é o caso daquelas que possam ocorrer em relação a dois concorrentes de um mesmo concurso público.

    Igualdade e proporcionalidade constituem, assim, vinculações autónomas da Administração Pública, que a obrigam no exercício dos seus poderes discricionários (que implicam uma margem de escolha da responsabilidade da Administração). A violação tanto de um como de outro determina a ilegalidade das actuações administrativas, enfermando os respectivos actos administrativos do vício de violação de lei.

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