terça-feira, 30 de abril de 2013

Noção restrita vs Noção ampla de acto administrativo


 O acto administrativo é talvez a figura do direito administrativo que mais tem sofrido mudanças com a própria mutação da realidade administrativa. É também a forma de actuação administrativa mais susceptível de criar discussão, nomeadamente quanto à amplitude da sua noção.
Os problemas adjacentes à noção de acto administrativo começaram a ser suscitados aquando da mudança do panorama de Estado Liberal, cuja Administração Pública era agressiva e tinha uma construção autoritária, para o Estado Social, cuja Administração Pública passa a ter como funções a prestação de serviços e a satisfação de necessidades colectivas. Ora passou a não fazer sentido a definição de acto jurídico como proposta por Otto Mayer e Maurice Hauriou, o acto de polícia, equiparado à sentença, segundo o primeiro autor e, por isso, passível de definir o direito do súbdito no caso concreto assim como de execução coactiva contra os particulares, e contraposto ao negócio jurídico, tal como admitia o segundo autor para deixar claros os poderes exorbitantes da Administração.
Estas concepções vão influenciar toda a construção doutrinária portuguesa, sendo que alguns autores as assumem na sua totalidade, outros rejeitam-nas na íntegra e outros tentam arranjar um meio-termo entre uma opção e a outra. O próprio CPA dá algumas orientações no seu artigo 120º que ajudam a definir o acto administrativo.
É importante referir que a grande dúvida que se coloca hoje que vivemos num Estado Pós-Social é saber que actuações da Administração Pública são abrangidas pela noção de acto administrativo. Já que o exercício da Administração deixou de ser unicamente desfavorável para os particulares com a introdução do conceito de Administração prestadora de serviços, e passou a ter eficácia múltipla, sendo vários os sujeitos afectados pelas decisões administrativas mesmo que elas não lhes digam directamente respeito, isto a par dos novos actos jurídicos provenientes da administração que nada têm de jurídico (por exemplo, o controlo aéreo), é urgente repensar as doutrinas clássicas baseadas em Mayer e Hauriou. Para além disso, apareceram os chamados direitos de terceira geração (direitos procedimentais, direito ao consumo, ao descanso, ao ambiente, etc), que delimitaram as formas de actividade da Administração passando esta a ter que ter em consideração os referidos direitos.
Posto isto, vou passar a apresentar as diversas doutrinas acerca da noção de acto administrativo.

Marcello Caetano
Parte de uma noção muito ampla de acto administrativo, na qual cabe qualquer actuação proveniente da Administração, incluindo os regulamentos, os actos jurisdicionais e os actos administrativos em sentido estrito.
Quanto a este entendimento mais restrito de acto administrativo, Marcello Caetano caracteriza-o como definitivo (define os direitos dos súbditos no caso concreto) e executório (é susceptível de execução coactiva), baseando-se na doutrina alemã e francesa respectivamente.
Nesta linha, Marcello Caetano define o acto administrativo como “conduta voluntária de um órgão da Administração no exercício de um poder público que para a prossecução de interesses a seu cargo, pondo termo a um processo administrativo gracioso ou dando resolução final a uma petição, defina com força obrigatória e coerciva, situações jurídicas num caso concreto”[1].
Desta noção resultam, para além das duas características referidas, outros pressupostos: o acto administrativo tem que ser praticado por um órgão da Administração; o acto administrativo corresponde à acção final do procedimento administrativo; o acto jurídico é individual e concreto.
Este entendimento teve consagração constitucional até à revisão de 1989 e esteve disposto na legislação administrativa portuguesa até 2004 com a reforma do contencioso administrativo.

Diogo Freitas do Amaral
Este autor, à semelhança do primeiro, parte de uma noção mais ampla de acto administrativo comum à presente no CPA, para depois entender que o acto definitivo e executório é o “acto administrativo completo”, através do qual a Administração exerce a sua autoridade. Para além disso, Freitas do Amaral considera que é este acto definitivo e executório que pode ser susceptível de impugnação por parte dos particulares.
A razão pela qual Freitas do Amaral confere a característica de definitividade ao acto administrativo passa pelo facto do artigo 120º CPA referir a expressão “decisões dos órgãos da Administração Pública”, o que o leva a concluir que o legislador está, como Otto Mayer fazia, a equiparar o acto administrativo a uma sentença.

Rogério Soares
Rogério Soares liga a noção de acto administrativo à de recorribilidade, ou seja, é acto administrativo aquele que pode ser impugnado pelos particulares. Esta definição pressupõe uma actuação autoritária por parte da Administração, o que exclui as prestações de bens ou serviços, por exemplo, que são a grande maioria.
Fala-se aqui em acto regulador (define o direito independentemente de ser susceptível de execução coactiva). Portanto encontramo-nos num meio caminho entre a noção clássica e a presente no CPA de mera produção de efeitos jurídicos.
Rogério Soares, para contornar a dimensão demasiado restritiva do conceito que propõe, introduz os chamados “actos instrumentais” que são actuações acessórias das primeiras que não satisfazem directamente uma necessidade colectiva. Estes actos não são autónomos e correspondem àqueles praticados pela Administração durante o procedimento administrativo, não sendo a decisão final, que teria sempre, deste ponto de vista, conteúdo jurídico (o que já sabemos não ser verdade).
Este autor chama a tenção para o facto de nem todos os actos administrativos poderem ser objecto de recurso contencioso, o que acaba por tornar ilógica a sua noção de acto administrativo, porque ficamos sem perceber como é que um acto não impugnável pode ser considerado administrativo à face da noção por ele dada.

Sérvulo Correia
Para este autor um acto administrativo é: “a conduta unilateral da Administração, revestindo da publicidade legalmente exigida, que, no exercício de um poder de autoridade, define inovatoriamente uma situação jurídico-administrativa concreta, quer entre a Administração e outra entidade, quer de uma coisa”[2].
Na sua noção Sérvulo Correia recupera as características da definitividade e da executoriedade, assim como a os actos instrumentais de Rogério Soares, aos quais chama auxiliares.
O que ele acrescenta de novo é a obrigação do acto administrativo criar, modificar ou extinguir relações intersubjectivas. Refere também a necessidade de ter que haver um entendimento restrito de constituição, correspondendo este a um sentido declarativo ou enunciativo.

Vasco Pereira da Silva
Vasco Pereira da Silva parte da noção legal de acto administrativa, que lhe agrada por ser abrangente, e lima-lhe algumas arestas. Em primeiro lugar considera que não é apenas a Administração Pública que exerce funções administrativas através dos seus órgãos, também os particulares o fazem. Em segundo lugar, esclarece que a palavra “decisão” presente no artigo 120º CPA significa, ao contrário do que afirmava Freitas do Amaral, mera manifestação de vontade. Em terceiro lugar, este autor defende que se deve acrescentar referências à ideia de função administrativa, sendo o objectivo do acto administrativo satisfazer necessidades colectivas, assim como referências ao procedimento administrativo (podendo ser actos administrativos tanto aqueles que são praticados no seu decurso como aqueles que dizem respeito ao seu resultado final). Em quarto lugar, Vasco Pereira da Silva é da opinião de Sérvulo Correia quando este determina que um acto administrativo tem que criar, modificar ou extinguir relações jurídicas.
Posto isto, compreende-se que a noção de acto administrativo avançada por este Professor seja a de: “qualquer manifestação unilateral de vontade, de conhecimento ou de desejo, proveniente da Administração Pública e destinada à satisfação de necessidades colectivas que, praticadas no decurso de um procedimento, se destina à produção de efeitos jurídicos de carácter individual e concreto”[3].
Compreende-se nesta definição uma preocupação em ver integradas nela as actuações autoritárias da Administração, assim como as de prestação de serviços, todos os actos praticados durante o procedimento e os actos que tenham eficácia externa ou interna.
Quanto à recorribilidade, este autor é da opinião de Rogério Soares que define os actos administrativos tendo em conta a susceptibilidade de impugnação, ou seja, Vasco Pereira da Silva considera que qualquer acto administrativo correspondente à noção que apresenta pode ser objecto de recurso contencioso, desde que os seus efeitos afectem a esfera jurídica dos particulares. Deste modo, há um alargamento dos actos recorríveis, que não são substancialmente diferentes dos actos administrativos.

Apresentadas as diversas noções de acto administrativo, podemos verificar apenas Vasco Pereira da Silva defende uma noção ampla de acto administrativo, ao contrário dos restantes que defendem uma noção restrita. As vantagens da noção ampla passam pela possibilidade desta abarcar todas as actuações da administração, assim como ter em consideração os efeitos multilaterais que as acções da Administração importam, por vezes. Isto mostra-se mais coerente com o tipo de Administração que temos nos dias de hoje e vai ao encontro do que está legalmente consagrado no CPA, que não fala em acto regulador para caracterizar os actos administrativo e se basta apenas com a produção de afeitos jurídicos.
Esta querela da definição de acto administrativo só é relevante por duas questões. Pondo de parte as discussões doutrinárias, sobre o que se deve chamar acto administrativo e o que deve ter outro nome qualquer, o que realmente importa é saber, por um lado, que regime devem seguir as actuações da Administração, e por outro, quais são as actuações recorríveis.
Quanto à primeira questão, só os defensores da noção ampla realmente lhe respondem, porque essa noção inclui todas as situações individuais e concretas que produzem efeitos jurídicos, deixando de parte as individuais e abstractas, as gerais e abstractas e as gerais e concretas (que correspondem aos regulamentos), e os contratos administrativos. Portanto, todo o universo de acção da Administração Pública tem um regime disposto no CPA. Ora, se se defender a noção restrita, uma pergunta impõe-se imediatamente: qual as regras dos tais actos instrumentais ou acessórios, ou aliás, de todas as situações individuais e concretas que produzem efeitos jurídicos mas que não são nem definitivas nem executórias? São regidos pelas mesmas normas que os actos administrativos? Se sim, então qual é a relevância da distinção? Se não, então como é que são regulados? Há uma lacuna no CPA?
Quanto à segunda questão, o que importa saber é o seguinte: são apenas os actos administrativos os que são impugnáveis? É que se seguirmos os entendimentos de Sérvulo Correia e de Rogério Soares parece que sim. Mas então nesse caso o que é que acontece quando os actos instrumentais ou acessórios afectam as posições jurídicas dos particulares? Mais uma vez este problema fica resolvido com a adopção de uma noção ampla que não parte da recorribilidade, e que considera que, não havendo uma diferença de natureza entre actos administrativos e actos recorríveis, essa diferença decorre do facto de haver actos administrativos que afectam as posições jurídicas dos particulares (aqueles que são também recorríveis) e os que não afectam (que não deixam de ser actos administrativos, desde que preencham os requisitos da noção).
A realidade é que é mais simples e mais lógico defender uma noção ampla para evitar a criação deste tipo de problemas e de complexidades de outro género.



[1] Marcello Caetano, “Manual de Direto Administrativo”, vol I, pág. 463 e 464
[2] Sérvulo Correia, “Noções de Direito Administrativo”, vol. I, pág. 288
[3] Vasco Pereira da Silva, “Em Busca do Acto Administrativo Perdido”, pág. 624

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