O
acto administrativo é talvez a figura do direito administrativo que mais tem
sofrido mudanças com a própria mutação da realidade administrativa. É também a
forma de actuação administrativa mais susceptível de criar discussão,
nomeadamente quanto à amplitude da sua noção.
Os problemas adjacentes à noção de acto
administrativo começaram a ser suscitados aquando da mudança do panorama de
Estado Liberal, cuja Administração Pública era agressiva e tinha uma construção
autoritária, para o Estado Social, cuja Administração Pública passa a ter como
funções a prestação de serviços e a satisfação de necessidades colectivas. Ora
passou a não fazer sentido a definição de acto jurídico como proposta por Otto
Mayer e Maurice Hauriou, o acto de polícia, equiparado à sentença, segundo o
primeiro autor e, por isso, passível de definir o direito do súbdito no caso
concreto assim como de execução coactiva contra os particulares, e contraposto
ao negócio jurídico, tal como admitia o segundo autor para deixar claros os
poderes exorbitantes da Administração.
Estas concepções vão influenciar toda a
construção doutrinária portuguesa, sendo que alguns autores as assumem na sua
totalidade, outros rejeitam-nas na íntegra e outros tentam arranjar um
meio-termo entre uma opção e a outra. O próprio CPA dá algumas orientações no
seu artigo 120º que ajudam a definir o acto administrativo.
É importante referir que a grande dúvida
que se coloca hoje que vivemos num Estado Pós-Social é saber que actuações da
Administração Pública são abrangidas pela noção de acto administrativo. Já que
o exercício da Administração deixou de ser unicamente desfavorável para os
particulares com a introdução do conceito de Administração prestadora de
serviços, e passou a ter eficácia múltipla, sendo vários os sujeitos afectados
pelas decisões administrativas mesmo que elas não lhes digam directamente
respeito, isto a par dos novos actos jurídicos provenientes da administração
que nada têm de jurídico (por exemplo, o controlo aéreo), é urgente repensar as
doutrinas clássicas baseadas em Mayer e Hauriou. Para além disso, apareceram os
chamados direitos de terceira geração (direitos procedimentais, direito ao
consumo, ao descanso, ao ambiente, etc), que delimitaram as formas de
actividade da Administração passando esta a ter que ter em consideração os
referidos direitos.
Posto isto, vou passar a apresentar as
diversas doutrinas acerca da noção de acto administrativo.
Marcello
Caetano
Parte de uma noção muito ampla de acto
administrativo, na qual cabe qualquer actuação proveniente da Administração,
incluindo os regulamentos, os actos jurisdicionais e os actos administrativos
em sentido estrito.
Quanto a este entendimento mais restrito
de acto administrativo, Marcello Caetano caracteriza-o como definitivo (define
os direitos dos súbditos no caso concreto) e executório (é susceptível de
execução coactiva), baseando-se na doutrina alemã e francesa respectivamente.
Nesta linha, Marcello Caetano define o
acto administrativo como “conduta voluntária de um órgão da Administração no
exercício de um poder público que para a prossecução de interesses a seu cargo,
pondo termo a um processo administrativo gracioso ou dando resolução final a
uma petição, defina com força obrigatória e coerciva, situações jurídicas num
caso concreto”[1].
Desta noção resultam, para além das duas
características referidas, outros pressupostos: o acto administrativo tem que
ser praticado por um órgão da Administração; o acto administrativo corresponde
à acção final do procedimento administrativo; o acto jurídico é individual e
concreto.
Este entendimento teve consagração
constitucional até à revisão de 1989 e esteve disposto na legislação
administrativa portuguesa até 2004 com a reforma do contencioso administrativo.
Diogo
Freitas do Amaral
Este autor, à semelhança do primeiro,
parte de uma noção mais ampla de acto administrativo comum à presente no CPA,
para depois entender que o acto definitivo e executório é o “acto
administrativo completo”, através do qual a Administração exerce a sua
autoridade. Para além disso, Freitas do Amaral considera que é este acto
definitivo e executório que pode ser susceptível de impugnação por parte dos
particulares.
A razão pela qual Freitas do Amaral
confere a característica de definitividade ao acto administrativo passa pelo
facto do artigo 120º CPA referir a expressão “decisões dos órgãos da
Administração Pública”, o que o leva a concluir que o legislador está, como
Otto Mayer fazia, a equiparar o acto administrativo a uma sentença.
Rogério
Soares
Rogério Soares liga a noção de acto
administrativo à de recorribilidade, ou seja, é acto administrativo aquele que
pode ser impugnado pelos particulares. Esta definição pressupõe uma actuação
autoritária por parte da Administração, o que exclui as prestações de bens ou
serviços, por exemplo, que são a grande maioria.
Fala-se aqui em acto regulador (define o
direito independentemente de ser susceptível de execução coactiva). Portanto
encontramo-nos num meio caminho entre a noção clássica e a presente no CPA de
mera produção de efeitos jurídicos.
Rogério Soares, para contornar a dimensão
demasiado restritiva do conceito que propõe, introduz os chamados “actos
instrumentais” que são actuações acessórias das primeiras que não satisfazem
directamente uma necessidade colectiva. Estes actos não são autónomos e
correspondem àqueles praticados pela Administração durante o procedimento
administrativo, não sendo a decisão final, que teria sempre, deste ponto de
vista, conteúdo jurídico (o que já sabemos não ser verdade).
Este autor chama a tenção para o facto de
nem todos os actos administrativos poderem ser objecto de recurso contencioso,
o que acaba por tornar ilógica a sua noção de acto administrativo, porque
ficamos sem perceber como é que um acto não impugnável pode ser considerado
administrativo à face da noção por ele dada.
Sérvulo
Correia
Para este autor um acto administrativo é:
“a conduta unilateral da Administração, revestindo da publicidade legalmente
exigida, que, no exercício de um poder de autoridade, define inovatoriamente
uma situação jurídico-administrativa concreta, quer entre a Administração e
outra entidade, quer de uma coisa”[2].
Na sua noção Sérvulo Correia recupera as
características da definitividade e da executoriedade, assim como a os actos
instrumentais de Rogério Soares, aos quais chama auxiliares.
O que ele acrescenta de novo é a obrigação
do acto administrativo criar, modificar ou extinguir relações intersubjectivas.
Refere também a necessidade de ter que haver um entendimento restrito de
constituição, correspondendo este a um sentido declarativo ou enunciativo.
Vasco
Pereira da Silva
Vasco Pereira da Silva parte da noção
legal de acto administrativa, que lhe agrada por ser abrangente, e lima-lhe
algumas arestas. Em primeiro lugar considera que não é apenas a Administração
Pública que exerce funções administrativas através dos seus órgãos, também os
particulares o fazem. Em segundo lugar, esclarece que a palavra “decisão”
presente no artigo 120º CPA significa, ao contrário do que afirmava Freitas do
Amaral, mera manifestação de vontade. Em terceiro lugar, este autor defende que
se deve acrescentar referências à ideia de função administrativa, sendo o
objectivo do acto administrativo satisfazer necessidades colectivas, assim como
referências ao procedimento administrativo (podendo ser actos administrativos
tanto aqueles que são praticados no seu decurso como aqueles que dizem respeito
ao seu resultado final). Em quarto lugar, Vasco Pereira da Silva é da opinião
de Sérvulo Correia quando este determina que um acto administrativo tem que
criar, modificar ou extinguir relações jurídicas.
Posto isto, compreende-se que a noção de
acto administrativo avançada por este Professor seja a de: “qualquer
manifestação unilateral de vontade, de conhecimento ou de desejo, proveniente
da Administração Pública e destinada à satisfação de necessidades colectivas
que, praticadas no decurso de um procedimento, se destina à produção de efeitos
jurídicos de carácter individual e concreto”[3].
Compreende-se nesta definição uma
preocupação em ver integradas nela as actuações autoritárias da Administração,
assim como as de prestação de serviços, todos os actos praticados durante o
procedimento e os actos que tenham eficácia externa ou interna.
Quanto à recorribilidade, este autor é da
opinião de Rogério Soares que define os actos administrativos tendo em conta a
susceptibilidade de impugnação, ou seja, Vasco Pereira da Silva considera que
qualquer acto administrativo correspondente à noção que apresenta pode ser
objecto de recurso contencioso, desde que os seus efeitos afectem a esfera
jurídica dos particulares. Deste modo, há um alargamento dos actos recorríveis,
que não são substancialmente diferentes dos actos administrativos.
Apresentadas as diversas noções de acto
administrativo, podemos verificar apenas Vasco Pereira da Silva defende uma
noção ampla de acto administrativo, ao contrário dos restantes que defendem uma
noção restrita. As vantagens da noção ampla passam pela possibilidade desta
abarcar todas as actuações da administração, assim como ter em consideração os
efeitos multilaterais que as acções da Administração importam, por vezes. Isto
mostra-se mais coerente com o tipo de Administração que temos nos dias de hoje
e vai ao encontro do que está legalmente consagrado no CPA, que não fala em acto
regulador para caracterizar os actos administrativo e se basta apenas com a
produção de afeitos jurídicos.
Esta querela da definição de acto
administrativo só é relevante por duas questões. Pondo de parte as discussões
doutrinárias, sobre o que se deve chamar acto administrativo e o que deve ter
outro nome qualquer, o que realmente importa é saber, por um lado, que regime
devem seguir as actuações da Administração, e por outro, quais são as actuações
recorríveis.
Quanto à primeira questão, só os
defensores da noção ampla realmente lhe respondem, porque essa noção inclui
todas as situações individuais e concretas que produzem efeitos jurídicos,
deixando de parte as individuais e abstractas, as gerais e abstractas e as
gerais e concretas (que correspondem aos regulamentos), e os contratos
administrativos. Portanto, todo o universo de acção da Administração Pública
tem um regime disposto no CPA. Ora, se se defender a noção restrita, uma
pergunta impõe-se imediatamente: qual as regras dos tais actos instrumentais ou
acessórios, ou aliás, de todas as situações individuais e concretas que
produzem efeitos jurídicos mas que não são nem definitivas nem executórias? São
regidos pelas mesmas normas que os actos administrativos? Se sim, então qual é
a relevância da distinção? Se não, então como é que são regulados? Há uma
lacuna no CPA?
Quanto à segunda questão, o que importa
saber é o seguinte: são apenas os actos administrativos os que são impugnáveis?
É que se seguirmos os entendimentos de Sérvulo Correia e de Rogério Soares
parece que sim. Mas então nesse caso o que é que acontece quando os actos
instrumentais ou acessórios afectam as posições jurídicas dos particulares?
Mais uma vez este problema fica resolvido com a adopção de uma noção ampla que
não parte da recorribilidade, e que considera que, não havendo uma diferença de
natureza entre actos administrativos e actos recorríveis, essa diferença
decorre do facto de haver actos administrativos que afectam as posições
jurídicas dos particulares (aqueles que são também recorríveis) e os que não
afectam (que não deixam de ser actos administrativos, desde que preencham os
requisitos da noção).
A realidade é que é mais simples e mais
lógico defender uma noção ampla para evitar a criação deste tipo de problemas e
de complexidades de outro género.
Sem comentários:
Enviar um comentário