terça-feira, 23 de abril de 2013

Acto administrativo... E outros

 A lógica autoritária da concepção acto-cêntrica do séc.XX assentava numa Administração Pública com actuação agressiva, de Estado-Polícia. Daí que Otto Mayer comparasse o acto administrativo a uma sentença judicial, definindo o direito e impondo-o coactivamente. Maurice Hauriou, por outro lado, compara o acto a um negócio jurídico, aceitando a ideia de Administração de serviço público, realçando todavia os "poderes exorbitantes" da Administração, de definição e imposição coactiva do direito. Chega, portanto, à mesma conclusão a que Mayer chegou, através de um raciocínio diferente.
 É esta noção liberal que entra em crise com o Estado Social, naquilo que foi o início da actuação prestadora da Administração Pública. (Apesar de em Portugal só em 1989 desaparecer a noção de acto definitivo e executório e apenas em 2004 ter desaparecido como critério quanto à impugnabilidade, quando se revogou o artigo 25º da LEPTA, substituindo-se pelo Código do Processo Administrativo). Como dizia, é o Estado Social que inicia a crise do acto administrativo liberal, mediante uma transformação da Administração, que deixa de ser exclusivamente agressiva e se torna prestadora. O acto deixa de ser "a forma" de actuação, para passar a ser "umas das" formas. (Da farda única para o moderno pronto-a-vestir, como o Prof. Vasco Pereira da Silva gosta de realçar).
 Ora, deixando as características positivistas de fazer sentido, urge encontrar uma nova definição do acto administrativo, sabendo que as relações jurídicas não são mais bilaterais, mas sim multilaterais, envolvendo outras formas de actuação (regulamento, contrato, operação material e técnica), paralelas ao acto administrativo. Em suma, a actuação moderna da Administração engloba e conjuga actos agressivos, actos prestadores e actos infra-estruturais (de eficácia perante terceiros), como diz o Professor VPS, citando um autor alemão, Funk : "o desenvolvimento do Estado prestador trouxe ao acto administrativo novos domínios de aplicação; ele tornou-se, a partir daí, num instrumento da Administração prestadora que, para a realização das suas tarefas, tanto utiliza a decisão unilateral (v.g. no direito da segurança social ou no direito dos subsídios ao ensino), como o contrato (v.g. no direito de apoio à construção). E essas transformações conceptuais dizem respeito tanto à necessidade de alteração da noção global de acto administrativo, como de teorização específica da modalidade de acto favorável ou da Administração prestadora".
 Historicamente, existe uma discussão acerca da noção e alcance do acto administrativo, nomeadamente entre tradições amplas e restritas do acto administrativo, que conduzem a uma discussão doutrinal entre o modelo francês (amplo) e o modelo alemão (restrito), sem prejuízo de um e outro serem seguidos por ordenamentos jurídicos com alguma ligação jurídica.
 A concepção ampla de acto administrativo define-o como produtor de efeitos jurídicos, subdistinguindo depois entre actos recorríveis e não recorríveis. (França, Portugal, Espanha e Itália). Percebe-se esta noção francesa, na medida em que - como aponta Laferrière - parece que o legislador quis prevenir através do emprego de formas tão amplas, qualquer distinção entre os diferentes actos das autoridades administrativas e subtraí-los a todos, indistintamente, à competência judiciária. Actualmente, prevalece a distinção equacionada por Hauriou, diferenciando-se os actos administrativos dos actos executórios (recorríveis), caracterizando-se estes pela sua unilateralidade.
 Por outro lado, uma concepção restrita do acto administrativo define-o como acto regulador (produtor de efeitos jurídicos novos relativamente ao particular). (Alemanha e Áustria). A adopção alemã de uma perspectiva restrita é historicamente marcada pela acentuada tendência acto-cêntrica, subvalorizando o procedimento e considerando apenas o resultado final da actuação administrativa, como refere o Prof VPS. Assim, o conceito alemão de acto administrativo, enquanto noção restrita por excelência, caracteriza-se pela regulação da posição do particular e pelo seu carácter externo e lesivo, excluindo a doutrina do acto administrativo os actos materiais, os actos preparatórios, os actos meramente confirmativos e os actos de gestão privada/contratos administrativos. Conceito restrito este que é delimitado pela recorribilidade jurisdicional, no entendimento de Forsthoff (que é o mesmo que dizer que é delimitado em função dos direitos que se fazem valer no contencioso administrativo, segundo Funk).
 Em Portugal, o artigo 120º do nosso CPA descreve o acto administrativo como sendo "decisões dos órgãos da Administração que ao abrigo de normas de direito público visem produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta". Que considerações a tecer? Em primeiro lugar, cabe dizer que o conceito é claramente amplo, definindo o acto administrativo como produtor de efeitos jurídicos. Mas o artigo 120º refere também a unilateralidade e concretude do acto, assim como tendo de ser emanado ao abrigo de normas de direito público (quanto a este ponto, VPS diz que "no exercício da função administrativa" seria preferível).
 A Escola de Coimbra, mediante o Prof. Rogério Soares - muito influenciado pelo direito alemão - e com apoio nos Profs. Sérvulo Correia, Vieira de Andrade e Freitas do Amaral, vem defender uma interpretação restritiva do artigo 120º, optando por um acto regulador. Defende-se, portanto, uma noção a meio-caminho entre a concepção liberal do Prof. Marcelo Caetano que durou até 1989 e a concepção ampla que se retira de uma interpretação literal do art. 120º CPA. Freitas do Amaral avança, inclusive, com dois argumentos literais, nomeadamente o facto de o artigo 120º se referir a "decisões", comparando o acto à sentença e por se referir a "normas de direito público". Vasco Pereira da Silva refuta os argumentos de FA nos seguintes termos : quanto à "decisão", a noção é de facto redutora, mas não corresponde de todo à realidade; quanto às "normas de direito público", também os privados exercem actos administrativos, no exercícios de funções públicas, sendo que esses particulares praticam também actos administrativos (ex.: Concessões, Bombeiros). Além disso, adianta ainda VPS que a noção de acto administrativo deveria realçar a obrigatoriedade do procedimento, a sua inserção numa relação jurídica administrativa, e o facto de a unilateralidade e concretude servir para distinguir o acto administrativo do regulamento.
 Em tom de conclusão, cabe distinguir as formas de actuação da Administração Pública, como pedido.

1- Regulamento (acto unilateral, geral e abstracto). Ex.: Regulamento emanado pela Administração Pública acerca das normas de funcionamento de determinado departamento. (Não obstante, o Professor Vasco Pereira da Silva defende que actuações a meio-caminho entre o acto e o regulamento (individuais e abstractas ou gerais e concretas) devem ser regulamentos, por uma razão simples : não são individuais e concretas. Ex.: Plano administrativo, que é geral e concreto).

2- Acto administrativo (acto unilateral, individual e concreto). Ex.: Ordem de demolição de um prédio.

3- Contrato (acto bilateral, individual e concreto). Ex.: Concessão administrativa ou compra e venda de canetas.

4- Operações materiais e técnicas (acto unilateral, individual e concreto, não produzem efeitos jurídicos, destinando-se normalmente a desenvolver regulamentos ou actos administrativos). Ex.: Desobstrução de estrada para limpeza da mesma.

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